creative commons by site Conjur

Lucidez do TJ-PR no caso do artista acusado de obsceno

Muita lucidez em tempos áridos para cultura e de censuras absurdas, revelou o Tribunal de Justiça do Paraná ao trancar a ação que acusava de obsceno o performer Maikon Kempinski, no espetáculo DNA de DAN. Demonstra que nem tudo está perdido!

Ao menos uma notícia boa depois do cancelamento da mostra Queermuseu, por parte do grupo Santander, em Porto Alegre, em 2017, por intolerância da extrema-direita no Brasil. Mais animador ainda é ler a análise feita pelo relator do caso,  o juiz Aldemar Sternadt, que considera “absurda e desarazoada” a ação.  Uma defesa a favor da cultura e da arte que é importante destacar, sobretudo neste momento que estamos à mercê de grupos radicais e puritanos, fundamentados em ideias retrógadas que aos poucos estão minando o desenvolvimento cultural e artístico do país.

Uma análise que o PanHoramarte não poderia deixar de reproduzir para o seu leitor. Principalmente porque a história se repete como na inquisição religiosa. 

A denúncia foi encaminhada depois que o artista protagonizou espetáculo performático com nudez artística no tradicional Festival de Dança de Londrina. E destaca que Kempinski, de forma consciente e voluntária, “realizou em lugar público espetáculo performático de caráter obsceno, denominado ‘DNA de DAN’, consistente na permanência do artista no interior de um ambiente inflável, transparente, completamente nu, sendo que, num primeiro momento, se manteve imóvel enquanto uma substância secava sobre seu corpo e, após, iniciou uma dança ritualística em interação com o público, que pode, na última hora da apresentação, adentrar o espaço cenográfico”.

Ele foi acusado com base no artigo 234, parágrafo único, II, do Código Penal, segundo o qual incorre na pena de seis meses a dois anos — ou multa — quem “realiza, em lugar público ou acessível ao público, representação teatral, ou exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que tenha o mesmo caráter

Fonte Conjur

Vale aqui reproduzir as palavras escritas pelo magistrado no acordão publicado neste mês de junho.

 “Inaceitável, pois, imaginar que meia dúzia de incomodados ou sensíveis com a nudez do artista, a seu talante, atrapalhassem uma apresentação artística. A arrogância e a ignorância saltam aos olhos! São pessoas que se arvoram tutores de uma população inteira, hipócritas que acreditam ter o poder de censurar o que o vizinho pode ouvir, ver e consumir!”.

O relator ainda afirma que o espetáculo não constitui crime de ato obsceno, sendo necessário observar em que contexto foi executada a performance. “A própria divulgação era bastante clara quanto ao conteúdo da encenação de maneira que compareceu ao espetáculo quem desejava. O ‘folder’ distribuído advertia sobre ‘nudez artística’ e também fazia expressa menção a classificação por faixa etária (16 anos)”. O acordão veja aqui

“O que é obsceno? A nudez? O sensual? O erótico?  As vestes sumárias nas ruas, praias e piscinas? A ausência de roupas dos mendigos e miseráveis que perambulam pelas ruas de nossas cidades?

Tenho que obscena é a nossa hipocrisia, a miséria, a corrupção, enfim, obsceno é tudo que avilta ao homem! Arte e cultura jamais serão obscenidades”. Aldemar Sternadt,

Bravo! Bravo senhor juiz! Perguntamos aos puritanos de plantão o que é mais imoral do que a fome, a miséria, corrupção e a falta de solidariedade.

A vida e a morte  Gustav Klimt - 1916

Doces lembranças na despedida

No meio de tantas notícias ruins, a pandemia também tem trazido momentos interessantes. É irônico dizer, mas fico feliz por meus avós não fazerem mais parte desta vida.

Viver o isolamento social, seria algo tão difícil para eles que precisavam tanto dos familiares por perto.Pensando nisso, me lembrei da morte da minha avó, que como toda perda de alguém que amamos foi triste, mas que gostaria de contar um pouco aqui, pois por mais estranho que pareça, me recordo dando risada.
 
Minha avó materna esteve anos adoecida com mal de Alzheimer. Quando foi diagnosticada com a doença foi muito triste para todos os filhos e netos. Sua memória sendo apagada tornava a convivência com a perda, morte e luto a cada dia, por anos de nossas vidas. O medo também fez parte de nossa caminhada por um tempo, medo de vermos nossos pais repetirem este diagnóstico ou mesmo nós os netos, sendo marcados por este destino assustador em um futuro.
Mas enfim, a morte propriamente dita efetivamente chegou. O dia que recebi a notícia do falecimento de minha avó , estava em uma conexão, no meio do caminho para minha cidade natal. Tomando um café com pão de queijo no aeroporto, chorei sozinha naquele momento e me senti muito solitária. Desejei estar perto da minha família.
Enfim, de certa forma, foi um misto de tristeza, mas também de alívio por saber que minha avó querida não estava mais presa naquele corpo e cérebro que não tinham mais suas funções adequadas para viver e a família que sempre foi muito unida, tinha se tornado um caos nas relações.
Estávamos tristes pela forma como tudo que tinha acabado. Com esta doença, não só a vida da minha avó foi terminando, mas também a união da família foi colocada em “xeque”. Porém, a questão mais estranha que aconteceu, que me fez escrever esta crônica, foi o dia do seu velório e consequentemente o enterro.
O velório como todos, acabou sendo um evento de família, onde pude encontrar tantas pessoas que há tempos não via. Quando olhei para minha avó no caixão, assim como o momento de despedida, antes do enterro e o próprio enterro, me causou uma grande dor. Chorei imensamente, chorei a tristeza de saber que há anos já não tinha minha querida e alegre vó, chorei por saber que nunca mais poderia abraçar e sentir aquele cheirinho delicioso que só ela tinha no aperto de nossos corpos.
Mas por outro lado, os demais momentos do velório foram de muita conversa e em quase todas as horas que lá estivemos, além das conversas muitas lembranças, piadas regadas com muito riso  e até com direito a gargalhadas entre primos, tios e familiares próximos. Disfarçávamos para manter a postura diante de conhecidos que chegavam para dar os pêsames, já que a morte para todos queria dizer algo muito triste.
O dia passou, o enterro aconteceu e naquele dia também estava marcada a comemoração do aniversário da minha tia. Resolvemos manter o evento, que incluía apenas os familiares próximos.
Apesar do momento de despedida triste sabíamos que aquele dia era esperado e minha tia merecia uma comemoração.
Nos reunimos mais tarde e o mais engraçado foi quando minha mãe disse: “Gente podem tirar fotos, mas não postem nada hoje nas redes sociais…” Tínhamos feito postagens de aviso da morte da minha avó nas últimas 24 horas e agora íamos postar fotos comemorando? Um tanto estranho para uma sociedade que julga sem saber o que está acontecendo de fato.
Enfim nos divertimos, rimos e brindamos o aniversário, mas também o adeus de minha querida avó que já estava cansada de viver daquela forma.
Errado ou certo, não sei dizer o que é. Para nós foi um momento lindo, divertido e emocionante. Foi necessário e verdadeiro. E sabemos que se ela estivesse junto, estaria rindo conosco.
 
Contudo, é com a ternura do amor e respeito que sempre tive pela minha avó que termino este texto e com o qual deixo também este respeito a um mundo inteiro que sofre suas perdas, sejam elas quais forem.
Que os dias estranhos em que vivemos, sejam ressignificados e cada um possa encontrar a força naquilo em que mais acredita para atravessar esta etapa.
Creative commons Marina Silva pelo site Correio

Ailton Krenak é convite à reflexão sobre comunidade e coletivo

A entrevista com o líder indígena e escritor, Ailton Krenak, na Revista Periferias foi um convite à reflexão sobre a vida em sociedade, sobretudo o que fizemos dessa vida e o que resultou nestes tempos de pandemia.

Duas boas surpresas me proporcionaram essa leitura: reconhecer que as ideias de Ailton Krenak são de vanguarda e ao mesmo tempo preservam a memória entre o território e seus habitantes;  e a oportunidade de navegar no instigante conteúdo desta excelente revista, resultado de uma organização que mantém seu olhar ao redor da vida social, nas periferias. Além disso foi com avidez que li um texto tão reflexivo de Julia Sá Ears que nos faz repensar a importância do somos e estamos fazendo como discurso social.  Como diz ela, “de exercer a escuta e a aproximação aos povos originários não apenas pelo resgate de uma memória mas sim por uma gradual cura a partir destas fortes vozes que ecoam e recuperam a história da terra calada pelos nossos cimentos”.

Brilhante também foi a condução da entrevista feito por Jailson de Souza e Silva, diretor geral na UniPeriferias. Uma abordagem bem dirigida, principalmente quando pergunta a Ailton sobre a importância das biografias como referência de percursos construídos em nossas vidas pessoais e socialmente construídas. 

A resposta de Ailton  demonstra uma profunda experiência quase antropológica do potencial coletivo. “Acho que as biografias tem uma potência de evocar percursos da nossa formação e da nossa vida, da nossa experiência engajada, seja no contexto local, quando você vive numa pequena comunidade, ou quando você consegue extrapolar os limites dessa comunidade onde sentimos protegidos pela memória e pela história, mesmo que cada um de nós pode experimentar.

Índia e a mulata - Candido Portinari, 1934

Um pensamento que considera,  na trajetória da formação do indivíduo, uma gama de resultados em função do contexto em que vive.  Para ele, extrapolar os limites da comunidade é uma rara experiência. Se for consciente não existe problema. Mas, segundo ele, “a maioria de nós, cuspidos desse ambiente confortável , da vida familiar, do convívio no caso de uma comunidade indígena, ou uma dessas comunidades autônomas que vivem nas periferias do social, esse ambiente onde a vida prospera à revelia dos arranjos políticos e em geral. É como estivéssemos vivendo  em isolamento do mundo planejado, onde acontecem muitas invenções. 

São invenções que a história social não captura. Acho que durante muito tempo essas vidas foram experiências invisíveis, de gente maravilhosa que deu conta de criar os filhos, de formar uma comunidade, de proteger um território, de construir um sentimento de territorialidade onde aquele complexo de trocas, de famílias, de camaradagem vai se dando e os meninos crescem nesses ambientes com uma potência, uma capacidade de liberdade tão maravilhosa. Esse mundo acaba se constituindo como uma biosfera; lugar onde aquelas vidas chegam há 100 anos, até mais, são sábiods, pessoas com trajetórias ricas, mas que não conectam com as realidades complexas do mundo global que tomamos consciência mais tarde. 

No meu caso a gente foi cuspido do nosso território  muito cedo, porque vivíamos num contexto de comunidades que já eram dadas como integradas ou desaparecidas, comunidades indígenas. Era como se fosse o resto dos índios que sobreviveram à colonização do Rio Doce, mas que ainda tinham modelos de organização que implicavam o acesso comum às coisas. Ter acesso comum a água, ao rio, ao lugar onde você podia buscar comida, acesso de sociabilidade que envolvia a vida de muitas pessoas. Esses coletivos, é isso que chamam de comunidade. Eu acho que quando nomeiam esses coletivos de comunidades esvaziam um pouco de potência que eles têm, e plasma uma situação idealizada de comunidade – não conseguem problematizar a vida dessas pessoas.

Sacar uma biografia de um ambiente desses é uma maneira de iluminar todo esse ambiente e projetar sentido na vida de todo mundo; nossos avós, tios, pais, dos nossos irmãos, dos colegas de infância. É uma nave. É uma constelação de seres que estão viajando e transitando no mundo, não da economia e das mercadorias, mas no mundo das vidas mesmo, dos seres que vivem e experimentam constante insegurança. É como essas mentalidades, essas pessoas precisassem ter um mundo dilatado para poderem experimentar sua potência de seres criadores. 

Pessoas que cresceram escutando histórias profundas que reportam eventos que não estão na literatura, nas narrativas oficiais, e que atravessam do plano da realidade cotidiana para um plano mítico das narrativas e contos. É também um lugar da oralidade, onde o saber, o conhecimento, seu veículo é a transmissão de pessoa para pessoa. É o mais velho contando uma história, ou um mais novo que teve uma experiência que pode compartilhar com o coletivo que ele pertence e isso vai integrando um sentido da vida, enriquecendo a experiência da vida de cada sujeito, mas constituindo um sujeito coletivo. Ver a entrevista completa aqui.

 A resposta é de extrema profundidade e serve para refletir sobre o momento trágico e incomum que estamos vivendo em função da pandemia. O fato de nos depararmos com o mundo inteiro refém de um vírus mortal atesta um modelo social que perdeu o prazo de validade. 

Atesta também que os povos estão perdendo o instinto selvagem da cura, da sua relação com a mãe terra, a Pachamama como denominam os índios dos Andes.

O instinto selvagem a que refiro é o da construção de um indivíduo menos bélicos e mais solidário, menos consumista e mais simples. Um indivíduo construído a partir de uma organização social baseada no sentimento coletivo da vivência afetiva, de olhar para o outro como um semelhante. 

Sem dogmas e julgamentos religiosos. Ser apenas um microcosmo inserido no macrocosmos. Que tal observarmos que tudo aquilo que consumimos, na verdade  retiramos da terra na sua matéria-prima.

The Pont Neuf Wrapped - 1985

Christo deixa um legado crítico sobre obras embrulhadas

O paradoxal artista búlgaro, Christo, que morreu recentemente, surpreendeu na última entrevista ao dizer que: "mundo não precisa das minhas obras. Eu preciso dela e de meus amigos".

Paradoxal porque contrariou o pensamento comum dos homens desafiando a arquitetura ao envolver em tecidos ou plásticos monumentos que simbolizam uma época, uma cultura. Na sua última entrevista publicada no jornal de Artnewspaper, Christo, isolado e também assustado com a pandemia, em seus 84 anos,  reafirmou o conceito de sua extravagância. “Sou um artista totalmente irracional, totalmente irresponsável e completamente livre”.

Esse sentido de liberdade o compartilhou com sua mulher francesa, Jean-Claude, que faleceu em 2009, nas concepções de suas obras. O projeto atual era de envolver o Arco-do-Triunfo em Paris este ano, porém a pandemia obrigou-o a transferir para o próximo ano. O Arco-do-Triunfo para ele era um símbolo incrível de poder, construído no alto de uma colina. Quando recebeu a autorização ficou muito entusiasmado porque o projeto era algo que já estava pronto desde 1962.

Christo não somente sonhava com o impossível, mas o transformava em realidade.

Christo - creative commons via The ArtNewspaper

A contradição na manifestação de liberdade do artista era suas obras, ao mesmo tempo que também expressaram sempre um não a opressão de confinar suas criações artísticas às quatro paredes de museus.  Christo cresceu na Bulgária stalinista e deixou seu país natal para viver em Nova York, a cidade mais cosmopolita do mundo. 

Valley Curtain – Grand Junction e Glenwood Springs na Cordilheira Grand Hogback, no estado do Colorado, nos EUA, recebeu uma grande cortina laranja. A obra permaneceu por dois dias e foi documentada em filme que hoje é exibido em grandes museus, como Tate de Londres. 

 

The Gates – Um total de 7.503 painéis foram colocados com apoio de diversos artistas durante 25 anos, no Central Park, em Nova York, ao longo das passarelas do local expondo obras. As pessoas puderam caminhar livremente e apreciar o trabalho durante 16 dias.

Floating Piers foi uma instalação que aconteceu no lago Iseo, na Itália. Apesar de ter sido criado pelo casal, o artista acabou executando-o sozinho, em 2016, após a morte de Jeanne-Claude, em 2009. Durante 16 dias as pessoas puderam caminhar numa enorme passarela flutuando sobre a água.