Mathangi - mudra ligado ao chacra do ego e da ambição e atua no sistema digestivo.

‘Sanatorium’ é vanguarda ou clichê?

Há controvérsias na obra 'Sanatorium'(2011), que combina arte com psicologia, de Pedro Reyes. De acordo com a curadoria a proposta é oferecer tratamentos que mudam percepção da pessoa para diminuir a aflição urbana. Parece clichê, não é mesmo?

Nem clichê e nem vanguarda, mas um incrível e extenso arquivo social, antropológico e cultural de uma época na sociedade ocidental. Sanatorium é uma instalação performática que existe há 10 anos e tive a oportunidade de visitá-la na sua temporada agora no MAAT, em Lisboa. A mostra percorreu as principais cidades do mundo e propõe aos visitantes três opções, dos 16 tratamentos ofertados, todas as séries acompanhados por voluntários treinados para serem terapeutas.

Provavelmente essa obra irá enriquecer muito mais o conteúdo artístico de Pedro Reyes, mexicano  e sempre genial  em seus conceitos que unem arte e a questão social, do que a nós mesmo. Um ativista que se utiliza da arte interativa para a provocar a transformação, que vejam, não é o caso do Sanatorium.

Digo que possa talvez ser conteúdo para outra obra….

Prestei mais atenção no que significará a instalação para  futuro depois que li sobre as outras obras do artista. 

 Palas por Pistola (2007),  uma proposta artística na fronteira do México com os EUA. Em Culiácan. Armas foram trocadas por eletrodomésticos. Pelo recorde de doações foram derretidas e remodeladas em 1.527 ferramentas de jardinagem, depois distribuídas em escolas públicas para atividades de jardinagem.

Pás de Jardinagem .Palas Pistolas

Vou explicar em poucas palavras o por quê  dessa conclusão  da forma mais simples possível, com base nas três terapias que escolhi como tratamento: Mudrás , Citileaks, Casino Filosófico.

Mudras

Na minha opinião,  que tem muito com as minhas afinidades, achei a mais interessante.

Consiste em conhecer um série símbolos gestuais envolvendo o corpo. Sabem aquela  posição dos dedos das mãos em posição  de Yoga para meditar? São os Mudras.

O terapeuta mostra um série e o  por quê de usá-los e depois convida-o  para criar um próprio.Achei divertido!

Mudra chamado Prithivi
Citileaks

O  tratamento denominado Citileaks é um tanto infantil.  Lembra as brincadeiras de adolescentes. O visitante escreve um segredo seu num  papel, enrola e coloca dentro de uma garrafa preso a um barbante.

Depois tem a permissão de ler o segredo de outra pessoa de uma garrafa a escolher. O segredo que não é mais segredo que escolhi, claro anônimo,  foi de uma mulher jovem relacionado a uma experiência sexual na adolescência, com uma amiga que se tornou um tabu secreto.

Se o artista comparar o material escrito por pais e região poderá tirar incríveis conclusões sobre comportamento e sociedade.  Os temas mais abordados, a sensibilidade, o puritanismo, entre outras questões.

Casino Filosófico

O Casino Filosófico trabalha como um oráculo e sempre é realizado em grupo. Cada pessoa do grupo escreve três perguntas e o terapeuta recolhe e coloca numa caixa. No meio do círculo existe uma série de figuras geométricas com frases de pensadores  a cada lado da figura. 

Cada visitante lê perguntas que retira aleatoriamente da caixa, escolhe e faz girar uma das figuras e a resposta é aquela onde parar.  As perguntas podem ser expostas nas paredes da sala como um painel.

Nessa interação, mais ainda é possível perceber o grande arquivo expondo as sensibilidades de um povo, as questões existenciais.

Pedro Reyes  usa escultura, arquitetura, vídeo, performance e participação. Seus trabalhos têm a finalidade de estimular a intervenção  individual ou coletiva em situações sociais, ambientais, políticas ou educacionais. 

De suas instalações já realizadas, além de Sanatorium, escolhi duas para citar porque  achei geniais no sentido de propor uma mudança de mentalidade:  Música para Litofones e Baby Marxˆ

Música para Litofones

Litofone é um instrumento feito em pedra, blocos monolíticos com cortes paralelos de vários comprimentos e profundidades, que resultam em prismas que, ao serem atingidos, produzem notas musicais diferentes. Sua presença é ao mesmo tempo ótica, tátil e acústica, diferente de qualquer outro instrumento musical. Os litofones são sempre uma anomalia no universo musical, sendo sempre diferentes na sua forma e espectro sonoro.

Não é a primeira vez que Pedro Reyes faz esculturas musicais feitas com materiais inusitados, como é o caso de Disarm (2012), onde transformou armas de fogo em instrumentos, ou Satori (2016) onde trabalhou com gongos balineses percutidos por baquetas mecanizadas. Seis anos atrás, a prática escultórica de Reyes começou a se manifestar em entalhes diretos na pedra, e nessas duas encostas; a escultura em pedra e a produção de instrumentos convergem nestes litofones. Fonte: Wikepédia.

Baby Mark

“Baby Marx” é uma comédia de fantoches, tendo como personagens principais Karl Marx e Adam Smith. Tudo começou como a contribuição de Reyes para a Trienal de Yokohama de 2008 e depois como um projeto para o CCA Kitakyushu. O curador Akiko Miyake e o mestre de marionetes Takumi Ota trabalharam com Reyes para criar uma série de fantoches e um trailer que foram exibidos em uma mostra itinerante no Japão. A produtora mexicana Detalle Filmes se interessou em produzir o primeiro episódio que se tornaria uma série de TV. Um piloto foi filmado em 2009, o que gerou interesse em um filme ao invés de uma série de TV. Recentemente, Baby Marx foi exibido no Walker Art Center, em Minneapolis, e uma série de pequenos clipes foram lançados para a internet. Veja aqui a animação

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Vamos ouvir nossos poetas de rua quando gritam suas verdades!

As alegrias, tristezas, revoltas, conquistas, esperanças, dores, estão nas rimas dos poetas populares que gritam suas verdades nas esquinas do Brasil!

“Há agora uma enorme geração de poetas  que está ocupando as praças, as ruas e construindo uma nova língua, uma nova mentalidade que vai nos guiar…poetas, todos exercendo o seu direito de dizer o que acreditam”,  afirmou o ator e poeta Eduardo Tornaghi, na abertura do encontro das “Quebradas Poéticas”, realizado pelo seu canal no Youtube dos Estados Gerais da Cultura.

O encontro dos EGC deu voz a uma pequena parcela desses jovens, porém eles  estão em todo o Brasil mostrando que a genuína alma brasileira é poética, mesmo na luta diária pela sobrevivência.  “Precisamos ouví-los mais”, disse Tornaghi.

….E as “Quebradas Poéticas” mostraram a voz potente da geração jovem do Rio de Janeiro.  Poeta Xandu, Tio Leo, Slam das Minas, Jessé Andarilho, Slam 188, Tom Grito, Ozazuma, Ratos di Versos. 

Os Ratos di Versos já completaram mais de 10 anos de vida nas ruas recitando poesia pelas quebradas. A história é longa. Vale entrar neste link no Facebook e aí dispensamos as apresentações.  Veja aqui quanta gente participa dessa turma.  Youtube

O coletivo MargiNow iniciou com a ideia de sarau ainda em 2013, com visitas ao Sarau do Escritório (na Lapa), depois foi reunindo referências literárias locais, ativistas culturais da favela do Antares (extremo oeste do Rio) até que em 2015 instalou um sarau, migrou para o Viaduto de Madureira com apoio da CUFA, onde passou a promover batalhas de poesia falada, tanto slam como rap, o coletivo logo passou a realizar clipes e filmes, criaram uma biblioteca de caixote de feira e desde 2020 a instalação de uma biblioteca física é uma realidade na paisagem de Antares, os aliados são muitos, a equipe é família.

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foto cedida pelos Ratos di Versos

Gente talentosa que tem sonhos e coloca na futuro a esperança de um mundo melhor. Dudu Tererê, falando de Búzios, do Sarau da Praça, abriu o encontro com um Funk. Pelo  Funk da Revolução, encomendado por Eduardo Tornaghi, Dudu cantou humildemente, nas palavras e ritmo deixou o seu recado afirmando suas verdades, dúvidas e desejo de mudança. 

(…) As cidades vão crescendo de forma inconsequentemente.(…)

A ciência já vem alertando é bom você ligar  

acho bom é você ligar,

a mudança começa na gente ou mudo a minha vida para mundo mudar

e fazendo a minha mudança, não me dou por satisfeito eu divulgo a minha experiência para todos amigos com todo o respeito (…)

Slam da Minas

O coletivo Slam das Minas RJ fundado em 2018 promove batalhas de poesia falada, com a pandemia ampliam o alcance através das redes, programas de entrevistas, mostras, e munides da kombi-maravilha fazem entregas via Poesia Delivery, propõe empoderamento de gênero e LGBTQIA+ e participação ativa nas muitas lutas da cidade, os nomes Débora Ambrosia, Rainha do Verso, DJ Bieta, Andrea Bak, e outres fecham a equipe.**página Slam das Minas RJ no Facebook:,  Instagram  Slam das Minas site

Slam 188

Com presença dos poetas Árvore Bonita e Ozazuma, o coletivo Slam 188 promove batalha mensal de poesia falada, propõe inclusão e valorização da vida, tem suporte de psicólogos e intérpretes de LIBRAS, os nomes @poeta_monra & @pretapoetica fecham a equipe.

Instagram  Facebook

PIX Slam 188 – faça a sua contribuição com a chave 188slam@gmail.com

Árvore Bonita

Árvore Bonita é graduanda em pedagogia, Intérprete de Libras, poeta, artista visual, Slammaster e coordenadora de acessibilidade do Slam 188 e Slammaster do Slam Orgasmo.
CONTATO:
@arvore.bonita

Tio Leo

Leandro Mota, ou simplesmente, Tio Leo.  Atua em Búzios desde 2014 na defesa da cultura hip-hop, sendo um dos fundadores do Coletivo Urbano Buziano. Natural de Niterói, pai de três filhas.
Ativista e Produtor Cultural, poeta, raper e mestre de cerimônias,  Tio Leo do Coletivo Urbano Buziano -Tio porque foi escolhido como referência pela garotada da nova geração da fala/desafio/improviso em rima.

Jessé Andarilho

Jessé Andarilho é escritor, palestrante e produtor cultural. Cria da favela de Antares escreveu os livros: Fiel (Objetiva) e Efetivo Variável (Alfaguara) e Super Protetores (Itaú Leia para uma criança). Além disso, é presidente do Centro Revolucionário de Inovação e Arte (CRIA) e criou o projeto marginow para ampliar as vozes de artistas das periferias. Sua nova empreitada é a criação de uma biblioteca comunitária no local onde funcionava o antigo posto policial de Antares
CONTATO:
Insta: @jesseandarilho
Zapzap: +55 21 96454-8363

Gente que precisou lutar pelo seu espaço na rua porque a sociedade perde-se nas regras dos bons costumes. Sarau da Praça, em Búzios, por exemplo, nasceu por uma violência policial. A meninada fazendo poesia e se expressando quando os policiais entraram para dissipar o grupo. “Vou ensinar vocês se expressarem disseram eles”.

O grupo não denunciou, pelo contrário foi à prefeitura exigir espaço e liberdade para o seu projeto acontecer. E o Sarau da Praça hoje existe à revelia dos policiais. Quem sabe agora os próprios policiais não estão lá a ouvir nossos poetas recitarem suas verdades?

 Mas Dudu sofreu o trauma da violência por um bom tempo e relata a experiência no encontro online. Assista mais abaixo o vídeo que mostra muito mais, além da história de Dudu, muita poesia…..

A arte transforma mesmo na dor e na tristeza e nossos poetas de esquina sabem muito bem que isso é verdade. O encontro Quebradas Poéticas  teve como mestre-sala o ator Eduardo Tornaghi,  e mostrou que a nova geração no Brasil tem mais a poesia como arma e a arte no coração!

Ozazuma ( Foto 1)

Ozazuma é Daniel no RG, artista independente slamaster do slam188 , slammer, futuro pedagogo, produtor cultural e poeta. 

É tímido, introvertido. Mas tem a sensibilidade à flor da pele como idealizador do Slam 188, para não ver mais poetas morrendo. “Não  falo só da questão do suicídio, mas da vontade do poeta de estar vivo simplesmente, que acaba só sobrevivendo”.

Poeta Xandu (foto 2)
Poeta Xandu é carioca, tem estrada na poesia falada, atua no sarau Ratos Di Versos (Lapa-Rio), editor e escritor em fanzines, blogs, livros, segue sempre em viés coletivo, urbano, a cidade importa.
__Contatos: poetaxandu@gmail.com //  www.facebook.com/ratos.versos
Gênesis

Poeta, slammer, contadora de histórias e atriz. É uma das organizadoras do Slam das Minas RJ, uma batalha de poesia só para mulheres que acontece em todo RJ. Publicou seu primeiro livro infantil “Cadê Martin?” pela Chiado Editora, e seu livro de poesia “Delírios de (R)existência” pela Padê editora. Tem participação no livro “Identidades” da Ed. Conexões, uma coletânea com 18 escritoras negras. Em publicações independentes integra o primeiro caderno de poesia do Slam das Minas RJ, e seu fanzine “O poema sai enquanto você entra”. Em 2019, participou do do primeiro Slam de Poesia que aconteceu no Rock InRio, no Espaço Favela.
Tem sua poesia na Abertura do novo álbum da Cantora Zélia Duncan, “Eu sou Mulher, eu sou Feliz”.
Em 2020 estreou como atriz na websérie lgbtq+ “Contos Latentes – Extremos” no Youtube. Idealizadora do programa de entrevista Mapas para o futuro no Youtube.
CONTATO:
Insta: @desde.o.principio
Zapzap: +55 21 99129-2002

Tom Grito

Tom Grito é poeta @tomgritopoeta Dedica-se à poesia falada (spoken word/poetry slam) e às micro-revoluções político-sociais onde a poesia incinera, afaga, afeta e transforma. Pessoa não binárie transmasculine, utiliza pronomes masculinos e neutros (ele/elu/elle/él/he/they).
Entusiasta da cena de poetry slams e saraus de poesia no Brasil, interessa-se também pelo estudo de plataformas para a possibilidade de extensão poética como a performance audiovisual, poesia sonora e teatro. Participou ativamente da fundação dos coletivos poéticos Tagarela, Slam das Minas RJ e Transpoetas. É residente de pesquisa em artes no Museu de Arte Moderna do Rio (2021).
E neste ano (2021) representou o Slam-BR no 2o. Torneio Amistoso Online Abya Yala ficando na quarta posição entre 12 poetas de latinoamérica e Haiti. Campeão da final do Slam das Minas SP 2021.
CONTATO:
Insta: @tomgritopoeta
Zapzap: +55 21 98368-8508

Quebradas Poéticas foram mostradas aos leitores como um pequeno exemplo que nas esquinas do Brasil, mesmo com gente conclamando às armas, à guerra civil, nossos poetas estão aí, jovens, criativos já mudando o mundo, a linguagem, a vida.

Vamos ouvir nossos poetas de rua quando gritam suas verdades!

 

predio-antigo-8-andar

Oitavo andar

Minha vida admite poucas surpresas, mas ontem levei um tranco. Todos os dias estaciono o carro no subsolo, caminho pequeno trecho na garagem, desviando manchas de óleo, e logo alcanço o elevador.

Prédio velho, o elevador desloca-se com a lentidão dos movimentos do tai chi chuan e eu, se gostasse deles, diria que o aguardo com a paciência dos orientais. Entre premer o botão e escutar os freios rangentes, uma eternidade. Quando comprei o apartamento nem pensei no incômodo diário para abrir a porta do elevador. Ao contrário, admirei aquela estrutura de metal dourado, considerei um charme o prédio ser antigo, elevador todo aberto, permitindo se deslocar vendo as paredes, as portas dos andares desfilando diante do nariz. Nem me importei com o tempo gasto pela geringonça para percorrer oito andares até meu pavimento, num arrastar de correntes e entrechocar de ferros que, agora, invariavelmente causa a impressão de que irei despencar. Quando comprei o apartamento andava deslumbrado com Buenos Aires, o ar europeu, a elegância dos argentinos vestindo capas de gabardine. Como não podia me mudar para lá, decidi morar num edifício vetusto, feito aqueles da calle Suipacha, especialmente os situados entre a Corrientes e a Córdoba, para onde eu desceria num final de tarde e tomaria café, envolto em cachecol, coberto por boné de lã, encarando o frio portenho. Os brasileiros detestam os argentinos. Eu não. Odeio os de olhinhos puxados, esses que me massacram diariamente na empresa. Raro o dia em que não retorno para casa extenuado depois de suportar por dez horas aquele bando de japoneses e constatar que essa fama de perfeição, essa ideia de serem melhores em tudo, é uma bobagem. Os japoneses da empresa e o elevador do meu prédio se parecem: lerdos, antigos, irritantes.

 Há meses instalaram um espelho ocupando a parede do fundo do elevador. Aproveito a demorada viagem para me observar. A luz fria acentua a cor cadavérica, carente de sol, amplia as olheiras empapuçadas por duas bolsas de gordura. Confiro os cabelos rareando no alto da cabeça e comprovo: vou ficar careca antes dos fios se tornarem grisalhos. Assim foi com meu pai, teimava em esconder a calvície com um herético repartido no cabelo. Para não correr riscos de ficar despenteado, duas providências inevitáveis: excesso de laquê e o trajeto por ruas onde só pudesse ser apanhado por vento a estibordo. Perfilo-me e noto a protuberância da barriga tentando saltar para fora das calças. Embora constate essas imperfeições, o ego me induz a concluir que o aspecto geral é razoável, ainda posso chamar a atenção das mulheres. O enorme bigode sempre bem aparado, o queixo saliente indicando determinação, o rosto quase sem rugas prolongando uma juventude que já se foi, os braços ainda fortes e esse modo informal de me vestir, simulando uma casualidade que esconde o tempo perdido a cada manhã escolhendo a melhor combinação entre camisa e calças, entre cinto, sapatos e meias. Além de portar sempre sobre os ombros, aproveitando o frio que faz por aqui, um casaco jogado de forma a aparentar, ao mesmo tempo, desleixo e esmero. Jamais saio do banho matinal sem aplicar desodorante nas axilas e sem borrifar alguma colônia no peito, nos pulsos e em torno do pescoço.

Um solavanco indica que atingi meu pavimento. Caminho no escuro até o apartamento porque a célula fotoelétrica que deveria acionar automaticamente a lâmpada deve ser japonesa. É tão vagarosa quanto o elevador e quando decide clarear a passagem já estou trancando a porta e iluminando a sala com a tonalidade azulada do televisor, acionado assim que entro, sem sequer acender as luzes, porque ao sair, a cada manhã, o desligo da porta e deixo o controle remoto sobre a mesa.

Moro sozinho há quase vinte anos. Aos poucos, sem planejar, fui estabelecendo rotinas. Não lembro quando comecei a seguir, diariamente, o mesmo rito. Só notei possuir hábito de fazer tudo sempre do mesmo modo quando convivi, dentro do apartamento, por uns quinze ou vinte dias, com a Leda. Depois de diversos desentendimentos menores, o ápice aconteceu num final de tarde, quando não encontrei o controle remoto sobre a mesa, no lugar de sempre. Obriguei-me a acender a luz e vasculhar até achá-lo jogado no meio das almofadas do sofá. Irritado, mirei para o televisor e cliquei. Ao invés de aparecer a imagem do canal de notícias surgiu uma novela. E o volume estava muito mais alto do que sempre. Berrei, Leda, quem mudou o canal? Ela veio assustada lá do quarto, enfiando os braços numa camisa minha, falando baixo, entre incrédula e revoltada, Fui eu, por quê? Nem o rostinho angelical, nem os seios aparecendo sob a camisa entreaberta, nem a calcinha branca de algodão, nem as pernas de fora, muito menos os belos olhos espantados, atenuaram minha explosão, Porra, faz mais de dez anos que eu sempre chego aqui, ligo a TV, assisto ao noticiário das sete e, hoje, esta merda deste controle estava escondido não sei onde.

Não recordo os detalhes da discussão, lembro-me apenas de, na manhã seguinte, ela ter apresentado dezenas de razões para ir embora. Enumerou dúzias de manias minhas, que denominou de idiossincrasias. Acusou-me de praticar pequenas loucuras que, segundo ela, tornavam impossível vivermos sob o mesmo teto. Apesar de um pouco triste, confesso ter me sentido aliviado. Voltaria ao prazeroso silêncio de minhas noites solitárias, desincumbido da laboriosa tarefa de debater o menu do jantar, de decidir se iríamos ou não ao cinema, de escutar o que ela fizera durante o dia e, ainda, sentir-me pressionado a contar alguns acontecimentos lá da empresa. Geralmente eu inventava algo.

 Meu dia-a-dia no trabalho é de uma habitualidade modorrenta, não se altera nem pela aporrinhação dos japoneses. Sobre isto eu urdia algumas histórias sem qualquer compromisso com a realidade, mas que propiciavam o diálogo e a indignação de Leda. Adorava ver sua expressão de revolta: os lábios levemente entreabertos, o rosto inclinado para a esquerda e as sobrancelhas se aproximando do topo do nariz. E depois a verborreia, desancando os nipônicos. Quanto mais eu alimentava seu ódio aos orientais mais sentia vontade de beijá-la, de agarrá-la. Controlava minha lascívia só pelo prazer maior de ver ampliadas a veemência e a zanga naquele rostinho de menina. Inventava tanto que me obriguei a anotar alguns nomes e situações fictícios para mais tarde não entrar em contradição.

Enquanto escuto o noticiário preparo com apuro, com requinte, uma cachimbada. Escolho um entre os catorze cachimbos ingleses que mantenho descansando na estante, manuseio o fumo com a ponta dos dedos, deixando-o mais solto, preencho o fornilho aos poucos, com calma, pressionando suavemente para que não resulte nem muito apertado nem muito fofo. Uso exclusivamente fumo inglês. Os melhores. Os mais adequados a esse autêntico hábito londrino. Se Londres fosse tão perto quanto Buenos Aires, escolheria morar lá. De preferência em Knightsbridge, próximo ao Queen’s Gate. Caminharia por aquelas ruas de casas baixas com trepadeiras avançando pelas fachadas, perderia meu olhar na paisagem enevoada enquanto sorveria o aromático fumo Half and Half num genuíno cachimbo Dunhill.

Acendo o cachimbo apenas guiado pelo tato, os olhos pregados na apresentadora do telejornal. Apaixonei-me por essa mulher e já nem consigo prestar atenção nas notícias, embevecido com os olhos verdes, o cacheado dos cabelos e o exagerado sotaque carioca. Mantenho com ela um affaire, embora, é óbvio, ela não saiba. Namoro à traição, confesso zombando de mim mesmo. Há anos tem sido assim: prefiro os amores platônicos, as paixões apenas fantasiadas, do que o convívio cotidiano com as mulheres. Quanto mais elas me causam medo da proximidade, mais eu as desejo na imaginação.

Quase não percebi o ruído, tão vidrado estava na moça do telejornal. Lembro vagamente de algo perturbando a voz segura da apresentadora. Apenas no dia seguinte, quando se repetiram as batidas intermitentes, notei virem do apartamento de cima. O movimento ritmado, a cadência regular feito a pulsação, impacientou-me a ponto de levantar para apanhar o controle remoto sobre a mesa e diminuir o volume do televisor. Não havia dúvidas, algo se chocava contra a parede. Estava pronto para esbravejar, bater com o cabo da vassoura no teto, ligar para a portaria quando, entremeados com as batidas, percebi uns murmúrios picantes. Fiquei quieto, sentado diante da tela muda. Segurando o cachimbo com a mão esquerda, fixado nos olhos verdes da apresentadora, acompanhei o balanço ritmado dos baques na parede entreouvindo, vez ou outra, um rumor de gemidos. Só podia ser um casal, no apartamento justamente acima do meu, transando. De olhos fechados, deixei os sussurros e os ais me invadirem. Desfrutei, solitário, o prazer.

Na noite seguinte, assim que retornei do trabalho e abri a porta do apartamento ouvi as batidas. Apressei-me para sentar diante do televisor, acender um cachimbo e deixar transcorrer lentamente esses quinze minutos divinos, tomado por uma excitação que há tempo não me atingia. O fim das batidas foi acompanhado por um gemido agudo no andar de cima que, como o solavanco do elevador, me trouxe num átimo para a realidade.
A cena repetiu-se, com mínimas variações, durante alguns dias. Aproveitei para incorporar mais uma rotina: estacionar o carro no subsolo, caminhar o pequeno trecho de garagem, desviando manchas de óleo, entrar no elevador, acionar o 8, perfilar-me diante do espelho e fantasiar o cenário no andar de cima.

Anteontem uma sorte rara: o elevador esperando no subsolo. Embarquei e depois de um pequeno trecho um solavanco por um triz não me derrubou: a geringonça parou no térreo. Subiu uma gata vestindo miniblusa, calça jeans com cintura baixa quase mostrando os pelinhos pubianos, exagerados óculos escuros escondendo todo o rosto. Nem olhou para mim e apertou o botão no 9. Parou de costas e, enquanto eu examinava de soslaio o traseiro arrebitado, ela mirava-se no espelho. Uma sacola nas mãos deixava entrever um guarda-pó branco. Professora? Pela primeira vez eu apreciava galgar os andares bem devagar, lutando para disfarçar não ter notado aquela exuberância de mulher. Ela me aguçando o desejo, virada para o espelho do mesmo jeitinho que dona Adelina, a professora da quarta série, encarava o quadro-negro fingindo não notar meu tesão.

Quando percebi chegar no 8, preparei-me para o tranco. Ela quase se desequilibrou. Desci. Ao invés de seguir para o apartamento, parei no vão da escada e esperei ela sair no andar de cima, na tentativa de descobrir em que apartamento morava. Este indolente elevador demorou tanto que deu tempo até para a lesma da célula fotoelétrica acionar a luz do corredor. Encostei na parede para não ser visto. Ela apertou uma campainha. Pelo ruído da porta, não tenho dúvidas: é no apartamento bem em cima do meu. Segui perturbado para completar mais uma etapa do novo ritual: sentar-me na penumbra azulada e muda da sala e saborear a volúpia desses memoráveis quinze minutos.

Ontem os japoneses me seguraram até mais tarde na empresa. Já não basta aturá-los das oito da manhã às seis da tarde, ainda inventam umas horas-extras. Logo eu, que gostaria de cultivar o hábito londrino de tomar o chá das cinco, de preferência no The Georgian, chego esbaforido ao edifício, correndo, com a certeza de que já perdi os quinze minutos de prazer. Um século para o elevador aparecer. Embarquei. Mal ele se deslocou, um safanão. Paramos no térreo. A gatona que cruzara comigo anteontem, agora vestindo avental e gorro, empurra o vizinho do apartamento de cima numa cadeira de rodas. Prestativo, apressei-me em puxar a porta de ferro do elevador. Desajeitado, esbarrei nas pernas do vizinho, que soltou um gritinho. O mesmo gemido que eu vinha escutando há dias. Não sei se movida pelo meu espanto ou apenas por boa educação, a moça atalhou antes que eu pedisse desculpas, Não se preocupe, não foi nada, ele ainda sente dores depois do acidente, mas está cada dia melhor com as massagens. E esboçou um sorriso enigmático.

mural de Shamsia Hassani - foto via Instagram da artista

Shamsia Hassini conta sobre a angústia da mulher afegã no silêncio das imagens

Nos grafites de Shamsia Hassini a voz da mulher afegã encontra eco, porém no silêncio. Só nas imagens e na cor.

A  personagem que Shamsia criou está em paredes  e  muros de Cabul e de algumas grandes capitais no mundo. Começou retratá-la com burca, mas deixou de lado a burca e a repaginou como uma mulher moderna, corajosa e orgulhosa de sua condição feminina e de sua identidade cultural.

Além dos murais, a artista usa a fotografia como técnica aliada a pintura.  Ao criar a figura feminina, a compôs como uma mulher solitária, forte e corajosa, porém delicada, de semblante tristonho, sempre com os olhos fechados e sem boca traçada. 

Na verdade, numa análise crítica, Shamsia retrata o perfil da mulher afegã. Quieta, escondida, vigiada, sem voz e com muitos medos. As imagens são potentes nas mensagens, impressionam e comovem quem as visualiza. Impossível não escrever sobre ela.

“A arte muda a mente das pessoas e as pessoas mudam o mundo”, escreve ela na entrada do seu site oficial. Para saber mais clique aqui.

Pouco fala sobre si e seu currículo no site. Sua comunicação é pelas imagens de suas obras. Compreensível, sobretudo agora com a volta do Talibã ao poder. Mas pela arte ela percorre o mundo e conta o drama e expõe a alma dessas mulheres que geram filhos cercadas pela violência.

Em tempos de abertura política, a artista conseguiu percorrer diversos países e mostrar seus murais. “Os trabalhos de graffiti de Shamsia Hassani foram exibidos em todo o mundo. Seus murais são peças de arte em paredes do Afeganistão, Estados Unidos, Itália, Alemanha, Índia, Vietnã, Suíça, Dinamarca, Noruega e outros países”, fonte site oficial.

A mulher-mãe que gera um filho para guerra. Um obra comovente e forte na mensagem. 

. Tem algo mais eloquente que simbolize a liberdade do que uma ‘pipa’ pegando carona no vento e alcançando as alturas?

A pandemia, na criação de Shamsia, têm uma versão mais perturbadora para a mulher. Percebem o detalhe das grades na janela?

Shamsia Hassani é a primeira mulher grafiteira do Afeganistão. A jovem de 33 anos retrata por meio de suas obras de arte mulheres afegãs em uma sociedade difícil.

Filha de refugiados afegãos, Hassani começou a fazer grafite e arte de rua em 2010, após graduar-se na Universidade de Cabul em pintura e artes plásticas. 

A descrição de seu perfil no Instagram é bastante resumido e discreto, com 443 publicações, todas imagens de obras suas. No entanto, Shamsia têm  237 mil seguidores. 

 

O vídeo é de 2016 numa outra situação política diferente da atual. O pensamento da artista é de uma mulher que sonha e acredita que a arte tem o poder transformador.  Ela sonha por um mundo melhor.