O grito de Edvard Munch

Função do belo na crítica de arte depois de Freud. Non lo so che

Quando entrei naquela sala de aula repleta de alunos europeus concentrados,  num silêncio absoluto, me senti, num primeiro momento, fora do ninho. Todos estavam atentos  à explicação daquela professora italiana que colocava suas considerações sobre o “belo” e o conhecimento em psicanálise, citando Freud, filósofos como Nietzsche. 

Fui aos poucos deixando a timidez de lado e procurando captar o fio da meada daquela aula de história da arte ministrada num italiano erudito e com informações tão profundas sobre o que é o belo na arte.

O belo, segundo Freud, é quando você atinge o  “non lo so che” – o não sabido– dizia a professora dramatizando a entonação.

Pequena em estatura e gigante em conhecimento

Maria Letizia, seu nome, professora da Sapienza, Universidade de Roma, tinha pequena estatura, corpo miúdo, vaidosa e impecável nas roupas sóbrias, habitual para uma professora doutora universitária.

Era tão pequena de compleição física que ao chegar na sala, mal dava para enxergá-la em meio aos alunos, no entanto, quando terminava de abrir as janelas para arejar o local,  preparar o computador e a tela de projeção, gestos realizados como  um ritual quase sagrado, meticulosos, atentos aos detalhes e quando iniciava a falar, se tornava gigante.

Era como se a alma alçasse voo e seu olhar atravessasse o espaço real e atingisse um outro universo e lá encontrasse idéias iluminadas  e assim, com essa luz , como num transe,  encontrava-se com as mentes  daqueles que a escutavam com atenção.Eu estava neste grupo. Me sentia hipnotizada pelas suas palavras e, claro, dentro do meu cérebro tentava colocar em ordem as idéias e aos poucos ia entendendo a “loucura lúcida” da teoria do belo.

Lirismo dos italianos

Um fato interessante que observei  no comportamento dos italianos, em sua maioria, foi de que vivenciam intensamente a explicação que estão dando como se estivessem  encenando um teatro, ou uma ópera.

Têm lirismo nas palavras, dão sentido ao gesto. Assim  era Maria Letizia dentro da sala de aula.  “Funzione del bello e la declinazione delle n-iente nella critica d`arte dopo Freud”( Função do belo e a declinação do n- nada na crítica de arte depois de Freud) era o nome da disciplina. Pudera, com este nome não era possível ser diferente.

Um italiano objetivo perguntaria mais ou menos assim: “ma cheeee? che c’entra questo? ” – pra que serve isto? Creio que ficaria mais pasmo  perguntando porque uma brasileira estaria ali participando das aulas, sem ser artista.

Pra que serve isto?

Também me perguntei várias vezes o que estava fazendo naquela sala e porque queria tanto me envolver com o “belo”, especialmente porque até agora tinha lido poucas obras de Friedrich Nietzsche, e sobre o famoso psicanalista gostava de brincar com a frase “Freud explica”.

Para ajudar, na época falava um italiano mais para o coloquial do que para o erudito. Era uma estrangeira numa universidade européia, sem a pretensão de  conquistar um  título ou galgar algum degrau na hierarquia acadêmica.

A verdade é que eu precisava de mais conteúdo para ter condições e fazer críticas sobre um trabalho artístico. Por isso, é fundamental saber qual é a função do belo para o homem, para um artista, para um espectador ou apreciador de obras de arte.

A função do belo

É mais ou menos que Maria Letizia explicava:

“A função do belo, Freud introduz pela psicanálise. É  alguma coisa que repelimos e que  atinge a  ‘ignorância essencial’ um ‘non so che ’ – o não sabido. Algo diferente, involuntário, que faz atração imprescindível sobre esta resistência.

O trabalho de atração sobre a repulsão é a obra. É por isso, que para entender “o belo” é preciso manter presente a psicanálise – porque é por ela que  se explica  o fato que o individuo em seu inconsciente é transformado e  como acontece essa transformação para se aproximar do belo.

O que é transformado não é somente o individuo consciente,  mas é aquele do oposto, do  gozo, sobretudo do inconsciente,  que a partir dos efeitos da pulsão ( impulso vinculado à linguagem, a letra ) pensa, sonha e diz, e se aproxima do belo”.

Psicanálise

Portanto, a psicanálise tem uma função também terapêutica , mas ‘a você te interessa tanto como terapia quanto como um método de conhecimento’. Um exemplo é o pôr do sol,  que é igual quase todos dias e quase não se faz caso dele.  Mas quando e se , alguém improvisadamente o vê e o aprecia e o coloca  luz  – “mette in luce”-   este pôr do sol, sim, lhe  desperta atenção  e  vem ao seu encontro como se tivesse marcado hora.

Neste momento o abriga e o acolhe-  como qualquer coisa que craveja na sua verdade  em questão, do qual não sabe: e o elabora. E neste movimento, por certo,  vem o tremendo ( como o poeta alemão Rainer Maria Rilke diz, “porque o belo não é tremendo ao seu início) cada um é, e vem poeta”.

Depois deste rodopio mental em que se precisa de muita concentração e silêncio absoluto para captar o “sentido da coisa” finalizo esta confabulação comigo mesma e com você leitor, sem começo e sem fim. Finalizo ao descobrir que a minha poetisa preferida, Helena Kolody, com certeza, entrava no estado do “não sabido” para escrever seus maravilhosos poemas, e cito um pequeníssimo que diz tudo sobre o tema em poucas palavras:

Loucura Lúcida(HK)

Pairo, de súbito

noutra dimensão

Alucina-me a poesia

 loucura lúcida

*Foto> O grito, de Edvard Munch

Maria Letizia Proietti é professora e doutora da Universidade Sapienza, de Roma.

Cenas de Brumadinho. Painel de Inhotim. Foto por Mari Weigert

Viajar é protagonizar o personagem principal de um filme

A sensação de ser a personagem principal de um filme ao viajar, cujo roteiro e direção é de tua autoria, sobretudo a um lugar fora do país de origem começou partir de 2005, quando voltei à Europa, depois de 13 anos da última viagem que fiz ao velho mundo.

Penso, cá com os meus botões, que é o cenário europeu que dá a sensação de viver essa fantasia.

Portanto, começo a protagonizar esse filme, em que determino o local das cenas e programo o roteiro, a partir do momento em que coloco os pés no avião (ainda não viajei de navio) e recebo os votos de boa viagem dos comissários de bordo. As centenas de pessoas que estão espremidas nas poltronas, naquele gigante aéreo, tornam-se parte da minha família durante algumas horas.

Boas amizades

Nestes instantâneos de viagem, entre um percurso e outro, já fiz boas amizades e até hoje me comunico com elas por e-mail ou por telefone, ou nas redes sociais. Neste caso, Fany é uma dessas amigas. Uma curitibana que encontrei na fila do embarque para Roma, cerca de dois anos atrás. Fany disse que não falava nenhum outro idioma além do português – apesar de ter demonstrado agilidade na mímica e se fazia entender muito bem quando queria – e pediu que eu a ajudasse no caso de problemas.

E houve. Sua mala não chegou a Roma, no avião em que viajava, e demorou algumas horas para que ela pudesse reavê-la. Fiquei do lado dela até se resolver tudo e assim eu e Fany ficamos amigas. Fui apresentada a Lara sua filha, que vive em Roma e a esperava no aeroporto.

Resumindo, sempre que é possível nos encontramos. Detalhe: encontro-me mais com Lara que vive em Roma, quando viajo, do que com a própria Fany em Curitiba, onde vivemos. Pode? … .Pode sim, pois nunca achamos tempo no dia-a-dia para desfrutar dos prazeres de um encontro amigo, diferente das férias que nos dá direito a tudo.

Uma grande família

A sensação de acreditar que todos os brasileiros que encontramos no exterior se transformam na tua família deve-se ao fato de nos sentirmos órfãos quando deixamos a nossa terra natal, mesmo que a viagem seja por pouco tempo. No meu caso, em especial, me sinto mais carente e vulnerável e encontro alguns também que estão se sentindo desta forma pelo caminho.

É importante frisar que esta reflexão sobre os sentidos de uma viagem são próprias da minha personalidade… Muito deslumbrada com tudo!

Em síntese, depois de 2005 fiz alguns roteiros inesquecíveis e cada qual com uma história para contar e um amigo deixado no país longínquo.

A carioquinha Mariana foi outra amiga conquistada nestas andanças pelo mundo afora. Menina ainda e muito corajosa nos seus 22 anos, em 2007, quando a conheci na Turquia. Pela pouca idade lembrei-me das minhas filhas e quase a adotei na longínqua Istambul. Apaixonei-me pela cidade porque ela me foi mostrada pelos sentimentos e o olhar de Mariana que é sensível e aprecia a arte e o belo.

A amizade do peruano Julio Guilhermo foi outra história de destaque nos meus diários de viagem. Julio tinha um táxi em Lima, no Peru, e fazia roteiros turísticos pela cidade e por ter sido nosso guia por Lima o inseri no texto de uma matéria de turismo sobre o Peru e o Machu-Pichu.

Nunca mais Julio esqueceu esta gentileza e nos tornamos bons amigos via e-mail e MSN. Depois de alguns anos, Julio foi trabalhar em Barcelona e ano passado, quando visitei a terra de Gaudi encontrei com o peruano que me orientou nos passeios e me fez experimentar uma saborosa “paeja” e bailar na cadência de uma sensual “salsa”.

Como podem notar, nas viagens protagonizo as cenas que o ambiente me propicia. Minha alma se agiganta e me sinto a dona do mundo. A partir daí, posso viver a bailarina, a deusa num templo sagrado do passado, a aventureira buscando experiências na vida, ou simplesmente uma mulher curiosa em conhecer lugares, pessoas e boas sensações para estimular outros a realizarem a experiência.

Conselho

Nunca esqueço o conselho de um médico para um amigo meu que estava em dúvida em gastar tanto dinheiro numa viagem mais longa. Ele disse: “o que você prefere, usar esse dinheiro conhecendo novas pessoas, outras culturas, relaxar e desfrutar da vida ou mais tarde em tratamentos e remédios.

 

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Uma viagem de turismo, tem a função de romper com o cotidiano que às vezes massacra e oprime nossos dias, proporciona a condição de olharmos para nossa vida pela lente da poética artística, acrescentando a experiência que se tem ao vivenciar outros lugares e conhecer novas pessoas.  A escolha é tua!

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Ex-libris – A importância de ter a sua própria biblioteca

Esse fim de semana fuçando na minha estante de livros, encontrei uma coleção intocável que comprei há uns 12 anos e nunca li essas obras. Ali estava eu e Machado de Assis frente a frente, de novo, depois de tantos anos.

Eu olhava para os livros e os livros olhavam pra mim: será que já não era hora de encarar de novo?! Depois de todos esses anos, esses livros seguem na minha prateleira e agora sem o temido vestibular, sem nenhuma prova em vista e nenhuma obrigação de ler.

Lembro-me bem do meu primeiro dia na universidade; a curiosidade, o saber e a vontade de estudar se uniam naquela sala de aula. Dentro daqueles muros de concretos, das paredes frias da PUC(Universidade Católica do Paraná), eu comecei a caminhar em direção ao meu futuro profissional… e ainda lembro da voz dos professores, naquele primeiro dia, com sua folha chamex impressa com umas 20 referencias bibliográficas.

Biblioteca particular

Os professores nos diziam que tínhamos que comprar esses livros e com eles, começar a construir a nossa biblioteca privada; o nosso pequeno cantinho do saber, o lugar onde possamos buscar conforto quando alguma informação nos falte.

Durante muitos anos eu tive a minha biblioteca: em Curitiba, em Londres, em Pontevedra, no Porto, em Santiago de Compostela e finalmente agora em Madrid, na Espanha. Em todos esses lugares também tive que fazer seleção do que vinha comigo e do que ficava, porque mudar-se significa abrir mão de coisas. E os livros entram também na categoria “coisas”.

É engraçado que nunca tenha jogado fora o meu exemplar de “Quincas Borba” ou de “Esaú e Jacó”. E com eles, outros que eu já tinha lido e que estão “de dar pena” de velhos e capengas. Mas estão aí: e toda vez que eu olho pra eles consigo visualizar ainda o momento que os li. E nessa lembrança, o momento me acompanha e começo a recordar também a idade que tinha, o que eu fazia, os choros, as risadas, as travessuras.

Momento Certo

Foi no meio dessa euforia de lembranças e saudades, com meu “Quincas Borba” na mão, que decidi que já era hora. Até o suplemento de leitura estava dentro do livro, com perguntas das  UM-SP, UFMG, etc.

Pois é. Era hora de encarar de novo, afinal até hoje não o tinha jogado fora. E como dizia meu professor José Carlos Fernandez, “os livros parados na prateleira não estão parados por acaso, apenas estão esperando o momento certo para ser lidos”. Acho que nunca vou esquecer suas palavras; tenho muitos livros na minha prateleira esperando o momento certo para ser lidos. E mesmo depois de anos e anos eles estão ali, firmes e fortes esperando por mim.

O meu momento com Machado chegou de novo. E você? Quem está esperando por você?

Ex- libris

20170309_065110Ex libris (do latim ex libris meis) é uma expressão que significa “dos livros de” ou “da biblioteca de”. Aqui na Espanha, muitos bibliófilos fazem carimbos personalizados, com o escudo da família ou um desenho maneiro para marcar todos os exemplares da sua biblioteca.  Geralmente são selados na contracapa ou na página rosto do livro.

Origem

Não se sabe a origem exata do termo “Ex-libris”, embora essa necessidade remonta a invenção dos tipos móveis por Gutemberg, quando os livros eram muito caros e somente pessoas com muito dinheiro e educação os possuía.

No British Museum, por exemplo, junto a uma caixa de papiros de aproximadamente 1400 a.C., há uma placa de cerâmica em que disse que tais papiros pertencem a biblioteca do faraó Amenofis III.  Já na Península Ibérica, o primeiro Ex-libris que foi encontrado é o do rei Fruela I (756-768), no reino de Astúrias.

Já na Idade Média, também, muitos nobres, bibliófilos, solicitavam que se pintassem o escudo da família no inicio do volume, indicando que pertencem à, ou a família de.

Mas é com o surgimento da imprensa, em pleno século XV, que se encontram os primeiros indícios dos Ex-libris. Os escudos já não podiam ser pintados nos livros ou manuscritos, e os proprietários geralmente escreviam o seu nome na folha de rosto.

Alguns amantes dos livros começaram a utilizar um tipo de Ex-libris fixos; outros, gravados ou impresso numa folha avulsa, que depois se encadernava junto ao livro.

O mais conhecido, no entanto, foi o ex-libris móvel, colado dentro do volume, na página de rosto ou no verso do livro.

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A coragem de Anna Pauline

Nesse Dia Internacional da Mulher a história de Anna Pauline Weigert é a mais apropriada para compor meu artigo sobre sagacidade da mulher.

À pequena, corajosa e determinada alemãzinha de Breslau, que com seus 33 anos, pegou seus quatro filhos a tiracolo, em pleno século XIX, embarcou num navio rumo ao Brasil, para encontrar o marido que há um ano não mandava notícias, dedico esse texto, como uma homenagem justa a quem não teve medo de ousar.

Pé-de-meia

Se Hermann, o marido, tinha como objetivo retornar à Alemanha depois de ter feito o ‘pé-de-meia’ perdeu a chance. Nunca mais conseguiram voltar para a terra natal. Graças à decisão dela que os Weigerts, da parte de Hermann criaram uma grande família nesse país tropical.

O alemão, então com 38 anos, foi contratado pela Compagnie des Chemins de Fer Brèsiliens, para trabalhar na estrada de ferro Curitiba-Paranaguá. Chegou no Brasil em 1879. “Passaram-se meses, e ele, atarefado com seus rebites (sua função era colocar rebites nas pontes e viadutos metálicos para a junção das peças) nada de dar notícias”, escreve Eno Theodoro Wanke, pg. 108,  A Saga dos Imigrantes  – Memória.

“Quando se completou o primeiro aniversário da vinda de Hermann, que fez Anna? Vendeu tudo o que tinham e embarcou num navio em direção a Paranaguá, com filhos e bagagens. Chegando aqui, Hermann quase desmaiou de susto ao vê-la. Sua vinda significava o fim das esperanças de regresso. E efetivamente, assim foi”.

Esses detalhes foram contados de pai para filho, passando pela família ao longo dos anos.

As ‘broas’

O escritor Eno Theodoro Wanke, um dos bisnetos, para compor o seu livro, fez um pesquisa sobre essas memórias familiares. Um dado que Eno não cita no livro, mas quem contava era meu pai, Egon, neto dela, filho de Eduardo – que nasceu no Brasil, era que Anna Pauline já tinha economizado o dinheiro vendendo ‘broa’, o pão de centeio, na Alemanha, muito antes de sua vinda de fato. Ocorreu que seu irmão bateu num oficial do exército prussiano e ela deu a ele todas as suas economias para que pudesse fugir.

A vida de Anna não foi nenhuma maravilha quando chegou no acampamento perto de Morretes e segundo contam fazia suas ‘broas’ em um forno improvisado naqueles enormes cupinzeiros do mato (termitas). O quinto filho, uma menina, nasceu no acampamento. “Era uma noite de chuva, e as condições do rancho onde ela estava eram tão precárias que chovia abundantemente sobre a cama das parturiente. O jeito foi algumas mulheres abrirem guarda-chuvas sobre ela para protegê-la das goteiras”.

Tramoia

A filha mais velha de Anna Pauline se chamava Marie, minha bisavó materna, na época com nove anos. Essa tramoia de bisavó e tataravó ao mesmo tempo é culpa de meu pai que resolveu se apaixonar e casar com a prima em segundo grau, minha mãe. Anne Pauline era mãe do meu avô paterno e avó do meu avô materno, sua filha Marie era mãe do pai da minha mãe. Confuso, né!  Por isso, acho melhor parar por aqui.

Principalmente porque o foco é o Dia Internacional da Mulher.  A história de Anna Pauline conto e reconto com muito orgulho porque prova a força das mulheres. Se recebi uma centelha, que seja de sua coragem e ousadia já basta para seguir em frente!