foto by Jaqueline D'Hipolito Dartora

Biblioteca musical – quando um país sabe o valor da cultura

Já imaginou uma biblioteca voltada somente para a música e os estudos musicais? Já imaginou um lugar onde as pessoas que não tivessem recurso pudessem aprender um instrumento musical, o solfejo, e emprestar partituras, biografias de músicos. Não é um sonho!

Esse lugar existe… está no centro Madrid e é dele que eu quero falar.

Epilogo

Já faz um tempo que venho pensando em estudar piano. De todos os instrumentos musicais, o piano quem sabe é o que eu mais gosto e aprecio. Deve ser porque na minha época de bailarina todas as aulas eram acompanhadas de um professor de piano. Que delícia!

Não faz muito tempo conheci um professor de piano, e começamos a falar sobre a possibilidade de eu aprender esse instrumento. O caso é que não tenho piano, nem dinheiro, nem lugar para colocar um. Em 40 metros quadrados fica muito difícil encontrar um lugar onde caberia um piano.

Quando conversamos, me disse que quem sabe poderia começar as aulas e treinar ou na sua escola ou na Biblioteca Musical. Fiquei boquiaberta. Biblioteca musical?! Como assim?! E eis que em Madrid existe uma tal “Biblioteca Musical”. E eu que sou uma rata de biblioteca, que ando entre uma e outra passando as minhas tardes e emprestando livros, nunca soube desse fato.

Que curiosidade mais grande se abriu diante de mim. Ainda mais quando descobri que a biblioteca musical ficava do lado do cinema onde sempre frequento. Um fato como esse não podia deixá-lo de lado. Comecei a investigar tudo sobre a Biblioteca… onde ficava, horários, o que oferecia e cada vez mais o meu espanto aumentava. Como a biblioteca não abria nos sábados e domingos, programei a minha visita uma sexta feira de tarde, depois do trabalho, para ver como era e como funcionava.

 

História

 

A “Biblioteca Circulante Musical”, seu nome original, nasceu como uma instituição paralela a “Biblioteca Circulante Literária”. Esta foi criadas em 1914 pelo diretor de Investigações históricas Ricardo Fuente Ascênsio como forma de promover a formação de novas instituições culturais que colocam os livros no alcance da cidadania.

Nesse contexto de renovação cultural, aparece Víctor Espinós, musicólogo e musicógrafo espanhol,  que começa a trabalhar na Biblioteca Circulante Literária em 1918 e logo em seguida, somente um ano depois de estar alí, apresenta seu projeto para a criação da Biblioteca Circulante Musical. Seu objetivo, como relata a própria biblioteca, era claro: uma biblioteca musical colocaria nas mãos das pessoas com escassos recursos econômicos páginas de papel pautado que fariam esquecer a rudeza de uma vida dura.

Essa biblioteca contaria com duas seções oficiais: uma com intuito didático, dedicado ao aprendizado e aos métodos de ensino; e outra, com o empréstimo de obras para os que já tinham conhecimentos suficiente para executar um instrumento.

Para isso contou com a doação e a generosidade de muitos amigos, músicos, filantropos que ajudaram a compor o acervo, assim como ajudas Estatais para a sua manutenção. Eis que em 1919, a prefeitura da luz verde para a concepção com a assinatura do Decreto de 27 de outubro.

 

 

 

Empréstimo de Instrumentos

Quem seja que leia esse intertítulo deve estar alucinando. Mas não é brincadeira não. A Biblioteca Musical dispõe de um serviço de empréstimo de instrumentos musicais, um serviço pioneiro na Europa e que existe desde 1932.

O serviço de empréstimo de instrumentos musicais parece que nasceu no mesmo momento que tiveram a ideia da biblioteca musical, porém foi procrastinado por várias circunstancias, sendo efetivado em 1932… completamente gratuito ao público, com vigência de um ano, sendo que a cada oito dias o aluno deve apresentar o instrumento para uma inspeção do mesmo.

Sala de ensaio

Como eu disse, isso não é uma biblioteca corrente. Nela se dispõe de salas reservadas para os que estão aprendendo algum instrumento musical ensaiem. Parece loucura, mas se buscarmos no nosso interior, ou mesmo etimológicamente, a função de uma biblioteca, chegamos à conclusão que a parte de ter um serviço de empréstimos de livros, sua outra função é dispor de um espaço tranquilo para estudar, sem interrupções.

Eis que estudar música, sem dúvida requere de um lugar onde emana silencio, e onde um pode manter a sua concentração sem interrupções. Por isso existem as chamadas “Cabinas de ensayo”.

O serviço foi criado em 1933 e é um dos mais singulares da biblioteca. Quando Victor Espinós organiza o empréstimo de instrumentos, também pensa em criar um espaço para poder ensaiar dentro da biblioteca. Nos primeiros anos dispunha de quatro pianos em que os estudantes podiam praticar uma hora e meia em dias alternados na semana.

Nos anos 60 se cria umas mini salas individuais em que se podem reservar horário e dispor de uma hora, ou uma hora e meia para estudar. O serviço se inaugura graças a diversas doações e nos anos 90 se instalam as 10 primeiras salas e os primeiros pianos adquiridos mediante a compra, oferecendo aparte das salas para estudar, outros tipos de instrumentos que eram emprestados na própria biblioteca para que pudessem se utilizados ali. E para completar existe uma sala de ensaio para grupos de câmara que querem ensaiar em conjunto.

100 anos da Biblioteca Musical

Esse acho que é um dos fatos que mais me surpreendem. Essa biblioteca acaba de completar 100 anos no ano de 2019, o que quer dizer que ela foi fundada numa época na qual em muitos países e incluso na Europa a educação não era um tema prioritário. Saber que Espanha se posicionava na elite da cultura promovendo tal ação me enche de orgulho e satisfação.

Estamos falando de uma época entre guerras, marcada pela miséria, mas também de vanguarda histórica e movimentos. Se nos lembramos de todas as correntes artísticos literárias que emergeram nessa época, somadas ao sufrágio feminista, podemos chegar à conclusão que nos países mais preocupados com o progresso social, a educação começa a ganhar relevância.

E no meio da miséria ocasionada pela I guerra Mundial, podemos ver uma ponta de esperança quando ideias como esta, a Biblioteca Musical, começa a ganhar relevo e proporciona meios educacionais para aqueles que nunca tiveram oportunidade de ver o que era um instrumento musical.

Espanha não participou da I Guerra Mundial mas lembremos que em 1933, justamente quando essa biblioteca começava a ganhar reputação,  se desencadeava a guerra civil, que acaba por levar os pobres a miséria extrema.

É um tanto paradoxo, mas o certo foi que durante todo esse período a Biblioteca resistiu, e nem um governo nem outro derrubou as paredes que outrora foram construídas. Quem sabe isso seja um sinal de esperança. Quem sabe a sua sobrevivência tenha sida um símbolo de protesto silencioso. Porque todos sabemos que a verdadeira revolução, é aquela que se faz em quatro paredes, com os cotovelos em cima da carteira e um livro aberto.

Um povo instruído leva a pequenos atos de progresso social, e sem a necessidade de destruir o sistema, um povo letrado é capaz de lograr como se diz aqui, passinho a passinho, que verdadeiras mudanças estruturais sejam feitas. Essa é a história da Europa. Ou parte dela. Não vamos negar que muito sangue foi derramado. Mas também é certo e não podemos negar que muita coisa foi construída com base na educação do seu povo. E isso muitas nações que compõe esse continente souberam ver. Sem grandes discursos, sem afã de mudar o mundo ou revolucionar a história, a criação dessa biblioteca é um símbolo lindo sobre os pequenos atos que fazem grande diferença.

 

 

 

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A geração de Guernica

Escrevo essas linhas depois de ter visto o documentário “La generación de Guernica” 13 anos após ter visto esse filme pela primeira vez ao chegar na Espanha, para estudar. Nessa época me empapava de todos os filmes, músicas, documentários e notícias que viessem em espanhol como forma de aprender o idioma. Ia todos os dias a biblioteca emprestar DVDs e livros que contassem um pouco da história do país, que então era meu destino de estudo e que, hoje, acabou se tornando a minha casa.

Hoje, o coração me pesa… e com esse pesar sinto que tenho que escrever sobre esse documentário que tanto me impactou, e que com certeza impactará os mais sensíveis. Mas não quero escrever sobre ele por uma pieguice sem sentido, um sentimentalismo barato; senão porque sinto a necessidade de contar uma história triste e recente do passado dessa terra, que acabou tendo consequências para muitos outros países. Porque essa história jamais deve ser esquecida.

A geração de Guernica foi um documentário realizado pela televisão Basca. Retrata a história das crianças que foram enviadas a vários países pelos seus pais, depois dos bombardeios da cidade Basca de Guernica pela Legião Condor de Hitler, em apoio ao General Franco. Esse bombardeio teve como objetivo, de um lado, testar os armamentos alemães para a sua guerra, e de outro atacar uma das cidades consideradas fontes de resistência da Guerra Civil Espanhola.

O documentário oferece testemunho dos que na época eram criança e tiveram que abandonar os seus pais, as suas famílias, e o seu país para estar a salvo de tudo que ocorria em Espanha nessa época.

Lembro-me bem de ter visto esse documentário com um amigo mexicano há mais de 13 anos, naquela sala de estar, em Pontevedra, e de ter me impactado tanto que até hoje, algumas imagens não foram capazes de sair da minha cabeça.

A guerra civil Espanhola foi um conflito que durou de 1936 até 1939 e que dividiu a Espanha. De um lado os Republicanos lutavam para restaurar a recente república que havia no país, de outro estavam os militares comandados pelo “General Franco”, que visava tomar o poder e tornar-se o chefe de Estado, levando a Espanha a uma ditadura de quase 40 anos.

Nessa época muitos pais de famílias, e principalmente depois do massacre de Guernica, sendo ou não simpatizantes republicanos temiam pela vida dos seus filhos e começaram a se organizar para enviá-los fora.

O documentário revive momentos muito duros, principalmente porque os filhos, as crianças que subiam a bordo do barco La Habana, tiveram que subir sozinhos. Estamos falando de um barco com 4000 crianças, tristes e famintas, porque nessa época a fome já tinha alcançado a muitas famílias espanholas. As crianças variavam entre 5 e 15 anos, mas muitas crianças com 4 anos e 16 também subiram, mentindo sua idade, incentivado pelos pais que tinham mais medo do que podia acontecer ali, que no país que estavam destinados. Portanto, subiram a bordo de um barco que tinha vários destinos: México, apoiado pelo então presidente Lázaro Cárdenas; União Soviética, também apoiado pelo governo Stalinista; Inglaterra e Bélgica, sem apoio governamental mas com ajuda de voluntários da Cruz Vermelha e de outras organizações não governamentais que acabaram se compadecendo do que ocorria na Espanha.

A história de exílio destes meninos não se limita ao primeiro barco que zarpou do porto de Barcelona rumo a esses países. Com o passar do tempo, foram organizando mais e mais barcos e estima-se que entre 1937 e 1938, cerca de 32 mil menores foram enviados a estes países. Todos os pais e inclusive os governos de tais países pensavam que ia ser por um curto período de tempo.  Mas a história sempre tem o poder de surpreender-nos e a guerra civil não terminou pronto, o que levou a estadia dessas crianças durar mais tempo do necessário, vivendo por anos no país estrangeiro, sendo educados ali e adotados por famílias locais.

Muitos perderam seus irmãos no caminho. Em um barco com mais de 4000 crianças era fácil que um não encontrasse mais ao outro. Outros, acabaram em destinos que não foram planejados pelos pais; crianças e família inteiras que iam a Inglaterra, acabaram se perdendo e descobrindo só anos mais tarde que o irmão acabou indo para Bélgica por engano.

Os que foram para México ficaram em Morelia, e coincidentemente quando estive ali no ano de 2009, conheci um menino que era neto de uma senhora que foi parar no México por essas circunstancias.

Depois houve os que foram para a União Soviética, em que o governo tratou de traduzir todos os livros ao espanhol e trazer professores para ensiná-los, tudo com o objetivo de educar as crianças no idioma do seu país.

Em 1939 quando acaba a guerra civil, Espanha está devastada, e Franco reclama a volta das crianças da Inglaterra e Bélgica, coisa que muitos pais se negam já que o país atravessa pela destruição, pobreza e fome extrema. Quando tudo que parece ser tão doloroso pensamos que vai acabar, a vida quer seguir dando golpes, medindo nossa resistência e vontade de sobreviver. Depois de anos, muitas crianças já não sabem quem são seu pais, muitos pais já não sabem quem são seus filhos… muitos pais acabam escrevendo aos seus filhos dizendo que fiquem onde estão, porque se regressam seriam só uma carga mais por toda miséria que estão passando.

Os que voltaram tiveram agora que enfrentar algo muito pior que a saudade e falta de cuidados dos anos vitais… enfrentam a fome. E uma fome, que como descreve um dos protagonistas, que lhe fazia comer as laranjas com pele, e o pão resseco de duas semanas. Os que ficam se vem imersos numa outra guerra, que tão só começa 5 meses depois de acabar a guerra civil: a Segunda Guerra Mundial.

Os que no México ficaram, quem sabe foram os mais afortunados de todos, já que não tiveram que passar pela guerra, mas sim de encontrar formas de sobrevivência com a mudança de governo, suas ajudas foram cortadas e muitas crianças, novamente, perderam a sua oportunidade de ser criança e tiveram que trabalhar.

Quando, por fim, a Segunda Guerra Mundial acaba muitos abraçam novas esperanças, já que Hitler e Mussolini perderam, muito provavelmente os países aliados se juntariam para tirar Franco do poder. Ledo engano. Nessa época, a preocupação deixa de ser Franco, deixa de ser o fascismo, e de repente, não mais que de repente, o mundo se volta contra a União Soviética.

E assim, com um sucesso detrás do outro o documentário “La generación de Guernica” vai compondo a vida de toda uma geração perdida; de toda uma geração assolada pelo mal humano, pela guerra e pela destruição, e desenhando a trancos e barrancos como cada um deles sai adiante, com as marcas e a cicatriz de uma infância não vivida.

De ele se pode tirar conclusões. Acho que entendo melhor muitos dos estereótipos que vejo na Espanha, seja pelo carinho e a importância que dão ao bom comer, como a importância que tem o estudo, o dormir debaixo de um teto, às ciências, à educação. Mas acho que a principal conclusão que tirei daqui é sobre o legado que queremos deixar aos nossos filhos e as futuras gerações.

O documentário toca fundo na alma, e essas linhas que escrevo contando tudo isso, o faço porque vejo a necessidade de contar essa história. Porque nos dias em que vivemos, a cada dia vejo mais pessoas com menos bagagem histórica e conhecimento dos fatos que hoje demarcam o que é Brasil, o que é Europa, o que é mundo.

Creio que há uma histeria geral por falta de conhecimento, e que hoje muitos que clamam medidas extremistas para erradicar a pobreza, a violência, não entendem nem querem entender de onde elas vêm e do porquê. Estamos perdendo a consciência do nosso passado e da nossa história; estamos esquecemos de muitos fatos recentes, fatos que definiram o seu rumo e que hoje explicam por que existem tantos imigrantes no Brasil, por que a União Europeia se formou, por que França e Alemanha que ontem foram inimigas hoje são países amigos, por que temos um estado do bem-estar, ou pelo menos, por que grande parte dos países europeus o tem?! A educação é necessária e o conhecimento é essencial para a formação de uma sociedade mais justa.

Porque, parafraseando a Guillermo Fatás, aqueles que não conhecem a sua história estão destinados a repeti-la. “La generación de Guernica” está aí para dar voz aos testemunhos de muitos daqueles que viveram nessa época e que em algumas décadas já não estarão aqui para contar esses fatos. Devemos, portanto, preservar, ver e compartir esses documentários, assim como muitos livros de história e matérias ao respeito. Devemos, nesse trabalho exaustivo, tratar de buscar a verdade, mesmo que ela seja frágil e vulnerável. Porque somente ela nos livrará dos absolutismos, dos extremismos e nos conduzirá ao futuro, ao futuro que esperamos…

Aos que desprezam a educação, aos que desprezam o conhecimento e aos que desprezam a história, lhes direi que sem ela não há possibilidade de futuro, entendendo-se futuro por um país mais honesto, mais justo, com mais possibilidades para todos.

 

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Mulherzinhas

Este fim de ano foi bastante corrido para mim; entre uma viagem e outra, não queria perder tempo para ler meus livros. Principalmente nessa época do ano me sinto muito unida aos grandes clássicos… especialmente aquele que tem cheirinho de Natal.

Desde pequena adoro o Natal. Antes gostava muito de ver toda a família reunida, com todos os primos, a casa cheia, a mesa farta e uma grande árvore montada em casa. Hoje em dia, vivendo fora, já me acostumei em reunir menos gente, ou às vezes ninguém; é certo que sempre monto minha árvore, maior que nunca, e me acostumei a fazer minhas próprias tradições natalinas que me permitem desfrutar e gozar dessa época do ano: chamo as pessoas para jantarem na minha casa, compro vinhos especiais, coloco os presentes debaixo da árvore, faço limpeza de roupa, livros e papeis todo fim de ano, me voluntario para servir jantas a famílias com menos recursos e procuro ler um clássico natalino todos os anos nessa data.

Ano passado li Contos de Natal de Dickens; esse ano foi um ano de um grande clássico que venho ensaiando anos para ler: Mulherzinhas de Louisa May Alcott. Curiosamente ano passado já pensava em lê-lo, quando saiu a edição especial do livro aqui na Espanha fui atrás e em nada estavam esgotados nas livrarias. Esse ano, como iam lançar o novo filme no cinema, acabei colocando como dever de casa ler o livro antes da estreia do filme, dia 25 de dezembro. Dito e feito…

Mulherzinha passou todo o Natal do meu lado, acompanhando-me todas a manhãs de frio e chuva que tive. Sabe aquele romance que te engancha do primeiro minuto e você não consegue parar de lê-lo até o final. Mulherzinhas é assim. Foram 350 páginas lidas a todo vapor, sem minutos de descanso. Quando estava fazendo outra coisa, lembrava do livro e instantaneamente queria voltar ao sofá e retomar a leitura.

Mulherzinhas conta a história das irmãs Jo, Amy, Beth y Meg, cada uma com uma personalidade diferente e aspirações distintas. Todas elas vivem juntas, numa casa relativamente humilde baixo a tutela da sua mãe, já que o pai estava fora lutando na guerra civil americana – embate que dividiu o Norte e o Sul do país entre 1861 e 1865. Passando por dificuldades financeiras, a mãe dessas meninas sai a trabalhar e em alguns momentos, elas são animadas a fazer o mesmo. De aí começa a história, que nada mais conta as aventuras de quatro irmãs que aspiram ser muitas coisas na vida, inclusive independentes e ser dona do seu próprio nariz.

Numa sociedade em que se educava as mulheres para casarem e terem filhos, sem dúvida, o livro de Louisa é muito progressista e extremamente feminista. Também lança algumas ideias revolucionárias; por exemplo, que as mulheres americanas, nessa época, aspiram mais a independência financeira que as europeias (dito em uma pequena passagem quando ingleses e americanos começam a competir num jogo de crianças).

As irmãs March, sem dúvida me conquistaram… principalmente Jo que queria ser escritora e independente. E Beth, com a sua bondade e amor pela música.

Tenho que dizer também que Mulherzinhas não tem um desfecho como esperamos… não é afã de fazer “spoiler”, mas esse livro é só a primeira parte da saga. E isso me deixou louca, porque quando o terminei, estava de viagem a Holanda, pensando que esse fim era meio estranho. Foi aí que, buscando na internet, me dei conta que essa era a primeira parte de dois livros. Estava fora e era incapaz de encontrar a segunda parte em espanhol para lê-lo. Pensei em comprar em inglês, mas onde eu estava também não tinha muitos livros em inglês. Que decepção!

Voltei a Madrid pensando na segunda parte do livro antes de vê-lo no cinema. E não é que não tinha. Ou você comprava “Mulherzinhas”, obra completa ou comprava só o primeiro tomo. O segundo não foi lançado. Quase tive um ataque.

Acabei indo ver o filme, e claro, um grande spoiler de toda a obra. Já me dei conta de tudo que acontece na segunda parte… aparte do fim. Sim; para os apaixonados da leitura, as vezes é muito bom ir no cinema e ver que a direção do filme foi tão bem-feita que não destripa o final. Na verdade, abre duas possibilidades e, no fim, não se sabe o que realmente passou no livro. Respirei aliviada.

A pergunta que não quer calar é: o filme é bom? Vale a pena? Eu digo que o filme é bom… para todos aqueles que leram o livro. Se você não é leitor, nem pensa em lê-lo o filme lhe deixa meio perdido às vezes. É uma narrativa de recordações, em que a protagonista, vivendo no presente, se lembra de muitas coisas do passado. Não tem uma linearidade novelesca que muitos romances de época têm.

Pelo menos foi isso que senti dos meus amigos que vieram comigo ver o filme e não leram o livro. Não entenderam muito.

Por outro lado, sempre sugiro ler o livro antes de ver o filme. Porque os personagens que se formam na sua cabeça sempre vão ser infinitamente melhores que qualquer atuação.

Certo que muitas atuações me decepcionaram, e muitos personagens não tinham nada a ver com aquilo que imaginava. Se cortaram partes cruciais do livro, dessas que lhe deixam chorando desconsoladamente… mas tive que perdoar ao diretor, já que foi um filme de natal, e, no fim das contas, nessa época a esperança renasce em nós.

Mas como não vim aqui falar do filme, senão do livro, os recomendo a todos aqueles que gostam de livros e querem ler romances com bons sentimentos, que leiam a Louisa May Alcott, que leiam “Mulherzinhas” e que se deixem levar por esse espirito de paz e esperança que nos acompanha cada começo de ano.

Feliz 2020!

 

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Precioso legado de Raquel Taraborelli que buscou em Monet sua inspiração

A arte se despediu há pouco (12/01)do melhor que o impressionismo brasileiro produziu. Raquel Taraborelli, uma engenheira que descobriu mais tarde que faria da sua vida a arte de viver, doou ao mundo não só seu talento, como pintora e jardinista, mas uma vida de surpreendente generosidade.

Interessante, o que me atraiu primeiro em sua personalidade foi seu lúdico jardim de dálias, rosas e lavandas – justamente minhas flores prediletas – publicado pelas melhores revistas da época! Imediatamente enviei-lhe um e-mail e perguntei sobre uma linda e delicada flor amarela que inundava a frente de sua casa que construiu em Votorantim-SP.

 

Ela, não só me respondeu como me enviou pelo correio, um envelope (que guardo até hoje) com as sementes do “velocino de ouro”, nome da flor encantada. Nasceu assim nossa amizade, muito antes inclusive, de eu pensar em fazer o curso superior de Belas Artes em Curitiba. Compareci, felizmente, para sua última vernissage na renomada Galeria André, em São Paulo (a qual lhe garantiu um sadio mecenato desde o  início de sua trajetória), como depois fui hóspede de sua vivenda linda em estilo provençal, onde tive o privilégio de ter, ao mesmo tempo, aulas quase exclusivas neste lugar de sonhos e o desfrute da beleza e dos aromas das flores de seu jardim que jamais pensei um dia conhecer.

Raquel também tinha hábitos que me surpreenderam: não via televisão (pois nada considerava melhor que fazer uso de uma vida mental saudável), se alimentava moderadamente, andava muito, inclusive fazia trilhas culminando em “flanar” pelo caminho de Compostela assim como acordava duas vezes por semana, às 04h00 da manhã, para servir café da manhã para “homeless” (sem-teto) de Sorocaba.

Nunca esqueci de um dia onde me disse que um “ministro” do STF lhe fez uma encomenda mas nem sabia quem era, pois não via TV, muito menos jornais, sendo que somente soube quem o sujeito era, por uma vizinha que lhe questionou o que a “autoridade” estava fazendo na residência dela. Coisas assim, bem Raquel. Também era muito simples no vestir e jamais alguém a reconheceria como a mestre do impressionismo brasileiro.

Nas aulas, era enérgica e me fez ver por outro olhar, desde as formas e cores até o percurso que meus pincéis deveriam seguir. Nunca esqueço do onírico azul hortência que me “obrigou” a utilizar em quase todos os movimentos de meu inesquecível aprendizado. Sem falar que a diva ainda dominava a aquarela como ninguém e não foram poucas as vezes que a vi, com autoridade, chamar a atenção de outros  seus discípulos.

Raquel era de uma persistência absurda no alcance da pincelada ideal, principalmente na busca das de Monet, seu paradigma confesso. Foi tanta resistência pictórica ao lugar comum, que foi várias vezes ao Museu Dorsay, em Paris, estudar passo a passo as pinceladas do mestre, onde através dos livros específicos franceses que comprava, analisava e rabiscava cada folha e flor pintada pelo gênio de Giverny!

Nada vi igual!

A par de sua personalidade forte, era muito sensível como me demonstrou na poesia que lhe fiz na sua última vernissage, fazendo uma postagem pública em sua página de artista, agradecendo o presente. Mal ela sabia que o presente maior era ter lhe conhecido. Raquel nos deixou um legado mas ao mesmo tempo um vazio profundo a ser preenchido. No entanto, como acredito que nada se perde, tenho certeza de que sua arte repercutirá no tempo e transcenderá os mundos, fazendo quem sabe, até Monet se curvar ao lhe receber de braços abertos…afinal, ela merece!

” T E U S . S A C R A M E N T O S

Qual natureza despenca em flores
Onde pétalas denunciam prantos
Senão as pinceladas de tua alma
Com o retrato de tua calma
Transbordando um painel de sentimentos…

Como num olhar vencido
Reinam em ti mil matizes de paisagens
Tecendo telas num desfile de imagens
Do melhor estilo ao tom da melhor obra
Sangrando cores num universo de momentos…

Testemunhando o belo sempre
Imaginando linhas a cada olhar
Traços firmes caminham teu trilhar
Eternizando lúdicos apelos
Transformando em fel o pior de todos os tormentos…

Credenciando nobreza em ti
Ao compor manhãs de corações prementes
Ao testemunho de sóis poentes
Tu fostes a escolhida entre tantos dons latentes
Luarizando sagas e venerando vidas com teus sacramentos…”

Novembro 18, 2014.
Suzel Koialanskas