“A liberdade que ofereço em cada pintura está no corpo mutável. Ao ter corpos em constante transição, deixa aberto para o espectador mudar as ideias de poder. Nesse processo, você muda o mundo ao seu redor. É aí que a beleza pode ser subversiva". Firelez Baez
A frase da artista dominicana Firelez Baez e sua colorida e esfuziante tela foi uma escolha a propósito a para iniciar o artigo dessa semana. “Leite dos Sonhos”, tema da Bienal de Veneza que encerra no dia 27, foi uma das mais interessantes e instigantes bienais, das quais participei e me envolvi emocionalmente com as obras. Também totalizou a maior participação de brasileiros dos últimos anos nesse evento de arte internacional e mais antigo do mundo.
O tema nesse biênio em Veneza – Leite dos Sonhos – foi baseada no título do livro de Leonara Carrington, no qual a artista surrealista descreve um mundo mágico no qual a vida é constantemente reinventada pelo prisma da imaginação e no qual é permitido. Não é mais ou menos esse mundo mágico, utópico, que tentamos trazer para a realidade?
É preciso reinventar-se constantemente, uma afirmação verdadeira. Caso nos acomodemos, a vida nos sacode e somos obrigados fazer inevitavelmente a transformação, ou numa outra situação, quem não gosta de comodismo, pela própria natureza, o (re)inventar-se faz parte de um hábito de vida.
Instalação do artista argentino Gabriel Chaile, cria espaço em cujos precedentes históricos, epistemológicos indígenas, costumes artesanais se misturam com a vida cotidiana. A característica de sua escultura se refere a uma teoria que define “genealogia da forma”. Criando objetos como panelas, fornos de argila, nos quais o artista estabelece uma relação entre os objetos tradicionais e a nutrição, assim o sustento, a colaboração e as atividades de uma comunidade. Nesse fornos de argilas gigantes estão os componentes de uma família. O forno central configura-se a avó materna.
As obras de Firelez, esculturas, desenhos e instalações, exploram uma narrativa da diáspora africana. Essa que foi destaque em especial Muzidi Calabi Yau Space (ou uma questão de navegação), a artista reflete sobre a resistência negra, imaginando novas interpretações e possibilidades de divulgação para as páginas de história sobre o tráfico ultramarino de escravos. Já a artista chilena, Sandra Vasquez del Horra, que viveu durante a ditadura de Pinochet, no Chile, colocou em destaque a obra “Non passaran los venceremos mi amor” na figura feminina oprimida retratada.
Belkis Ayón foi uma artista cubana e litógrafa. O seu trabalho foi baseado na religião afro-cubana, combinando o mito de Sikan e as tradições do Abacua, uma sociedade secreta masculina, embora acredite-se que o seu trabalho reflita suas questões pessoais.
Uma das versões do “mito da origem” de Abakuá refere-se a uma princesa chamada Sikán, pertencente à nação Efor, que uma manhã foi ao Rio Oddán para pegar água em uma vasilha e apanhou inadvertidamente um peixe misterioso, que, segundo a tradição, traria paz e prosperidade a quem o tivesse e que produzia um estranho som que representava a voz de um ancestral divinizado, o rei Obón Tanse, que era uma manifestação de Abasí, o Deus Todo-Poderoso. Quando colocou a vasilha com o peixe em sua cabeça, Sikán percebeu o som, a voz sobrenatural (úyo) e, dessa forma, foi a primeira a conhecer o grande segredo, sendo automaticamente consagrada. Com a autorização de Iyamba – o pai de Sikán –, esta é confinada por Nasakó, o bruxo do grupo, em um lugar oculto no bosque, para evitar que divulgasse o segredo entre as nações vizinhas, também interessadas em se apropriar do mesmo. Mas Sikán comentou o segredo com seu amante, o príncipe guerreiro Mokongo, pertencente à tribo vizinha dos Efik, que, então, se apresentou diante dos Efor para reclamar seu direito de compartilhar tal segredo. Sikán foi condenada à morte por traição ao grupo, ao revelar o segredo.
Escolhi o vídeo da DW Brasil, empresa de radiodifusão alemã, com site sucursal em nosso país, por sua forma clara em descrever a importância da Bienal de Veneza e no sentido de dar voz à mulher e as causas sociais, dentro de um panorama de mitos e sonhos.
As mulheres tiveram um papel de destaque nessa bienal e foram inclusive premiadas. A eloquência das obras expostas no Arsenale e no Giardino, refletem o nosso mundo em transformação, pós pandemia.
Quase todas elas deram força às minorias e mitos do passado sustentando o mundo mágico, subjetivo, que a arte alimenta e que consequentemente promove a transformação social.
Como uma militante na luta pela valorização da cultura e da arte para o fortalecimento de uma nação, celebro a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente eleito pelo povo. A cultura brasileira agradece aliviada a escolha que teve o aval de mais de 60 milhões de brasileiros que optaram pela democracia. Estaremos sempre atentos e conjugando o verbo esperançar.
É preciso ter esperança. Mas tem de ser esperança do verbo esperançar. Por que tem gente que tem esperança do verbo esperar. Esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. ‘Ah, eu espero que melhore, que funcione, que resolva’. Já esperançar é ir atrás, é se juntar, é não desistir. É ser capaz de recusar aquilo que apodrece a nossa capacidade de integridade e a nossa fé ativa nas obras. Esperança é a capacidade de olhar e reagir àquilo que parece não ter saída. Por isso, é muito diferente de esperar; temos mesmo é de esperançar”! Paulo Freire.