Scan (1)

A fuga do Neco

Por Luiz Ernesto Wanke – Esta é uma história de cadeia.

Trabalhei como dentista na Penitenciária Central do Estado do Paraná por dez anos. Lá ouvi histórias divertidas como esta e também, as amargas, como as da rebelião de 1989 – em que escapei por um triz – e onde morreram onze pessoas (dez presos e um agente, todos baleados pela polícia).

E o hospitalzinho desta história é o mesmo onde estão alguns presos da operação Lava-Jato.

Há muito o interno Neco não gozava da liberdade de andar por chãos diferentes. Então vibrou quando o guarda veio trazer-lhe a novidade de que sua reivindicação para conseguir óculos tinha sido atendida. Foi avisado que na outra manhã a escolta já estava escalada para levar um grupo de presos que estavam precisando de atendimento especial no hospitalzinho que fica a uns dez quilômetros da penitenciária e onde está o Manicômio Judiciário. Fora das esporádicas visitas ao Fórum para responder aos processos, são impossíveis as oportunidades de saída.

Na expectativa daquele passeio maravilhoso, Neco caprichou no banho e no traje. Exagerou tanto que causou espanto nos companheiros de camburão, sendo o principal alvo das piadas conhecidas: “Vai fazer exame de fezes?” ou “Com toda esta panca vai telefonar para a favela?”

Mas as providências da Segurança demoraram tanto que ao chegarem ao destino já passava da hora do almoço. O camburão despejou sua carga humana no pátio e célere ‘se mandou’ porque toda sua tripulação estava ávida para desfrutar o picadão da penita e ninguém queria conferir a má fama da comida do manicômio. Nem o Neco, é claro, que sem pressa colocou-se no último lugar da fila para que o anotador registrasse a entrada dos presos. Assim ficou divagando, principalmente com a horta bem cuidada que ficava ao lado do prédio principal, tanto que distraidamente se afastou do resto da turba. Sua cabeça estava longe, girando, lembrando-se dos tempos que plantava lá no sítio da família e com isto, foi se afastando cada vez mais da fila. Até se dar conta e correr afobado para se apresentar ao anotador. Mas chegou tarde porque agora era ele que estava se levantando:

“- Que canseira!” queixou-se o funcionário, largando a caneta no tampo da mesa e dando aquela gostosa espreguiçada:

“- Então é nosso convidado pro grude?”

Surpresa com sua atitude desconexa, Neco procurou ganhar tempo para entender a situação. Tentou dar uma explicação qualquer sobre o seu atraso, mas a prudência mandou que se calasse.

“- Pois eu tenho que tratar da minha fome!” Completou o anotador desaparecendo por uma porta lateral.

Estático, Neco ficou ali parado, só e aturdido com a situação. Começou a entender o que se passava: não é que o cara tinha confundindo-o com um funcionário acompanhante da caravana? Isto por conta do atraso e do traje. Nada mal, mas a fuga desejada que instantaneamente se armou na sua cabeça tinha problemas… Saiu de fininho do prédio e foi analisar suas chances. Cauteloso se aproximou novamente da horta e viu que depois da cerca se estendia um pavoroso banhadão. Sorriu por dentro ao pensar que, se tinha caprichado tanto na roupa não valeria a pena ser capturado todo sujo.

Já que pular a cerca não era, literalmente, a sua saída, voltou até perto do prédio e olhou em direção ao portal. Gelou porque percebeu o guarda porteiro olhando-o curioso. Não teve escolha, foi ao seu encontro, numa típica estratégia de que a melhor defesa é o ataque.

Ainda longe do guarda falou alto:

“- Gente boa, o homem vai demorar?”

O guardinha não entendeu.

“- O diretor não vem mais?” Repetiu de perto.

“- Ah, o diretor? Pode esperar sentado… Isto aqui é uma merda, não é todo dia que aparece e quando isto acontece assina uns papeis e se manda. Quem toca esta bosta é o vice… Serve?”

Não é que a mentira colou? Agora só tinha que administrar a situação.

“ – Não, meu trato é com o homão!”

“- Sobre o que?” Melou o guarda.

Neco não tinha resposta pronta. Olhou para os lados e lembrou-se de ter visto lá na penitenciária alguns canos pendurados e soltos no teto. Foi o mais rápido possível:

“- Sobre o encanamento!”

O guardinha fez um sim com a cabeça:

“- Cara está mesmo tudo vazando e este prédio só tem cinco anos de construção.”

“- Pois é, serviço para o governo é assim mesmo, não dura nada.”

A liberdade agora estava a cinco passos. Neco se aprumou:

“- Irmão não vou mais esperar… Sou pobre e tenho que correr atrás do prejuízo.”

Ficou deslumbrado acompanhando a ação lenta do porteiro, destravando e escancarando a folha do portão de saída. No vão que ia aumentando, pode vislumbrar a fresta da liberdade. Mas o guarda não largava do seu pé:

“- Não quer mesmo falar com o vice?”

“- Não esquente que amanhã eu telefono antes e não repito a burrada!”

O porteiro se aproximou, pegou no seu ombro e apontou para algum lugar distante:

“- Você é rabudo, rapaz. Lá adiante o ônibus está chegando ao final da linha!”

Finalmente Neco deu o primeiro passo na liberdade… Mais um pouco e ‘adeus, cadeia!’. Aí ouviu um grito do desgraçado do guardinha:

“ – Ei, cara!”

Ficou na dúvida se atendia ou não, mas pediu calma para si mesmo. Parou e deu uma olhada de relance: não é que o porteiro corria na sua direção? Suas pernas congelaram e pensou que aquela bela história chegara ao fim. Mas, para sua surpresa, o guarda gritou:

“- Se você não correr vai perder este ônibus que só aparece aqui duas vezes por dia!”

‘Ordem é ordem’, concordou silenciosamente.

Finalmente Neco pode olhar para o céu azul, aspirar o ar da liberdade e fazer aquilo que vinha reprimindo desde que se sentiu sozinho:

‘Por sebo nas canelas!’

 

(Do livro inédito, ‘Pobrete, mas alegrete’.)

 

 

 

 

 

 

 

Foto Internet/www.fanpop.com

‘Minha mulher parece uma artista’

Minha mulher parece uma artista’….

falou Umberto alto e em bom tom, com aquela sonoridade na voz que faz vibrar as mais escondidas e profundas cavidades de nosso ouvido. A frase foi uma reação imediata, logo em seguida que demonstrei a ele minha admiração pela elegância de Francesca.

A entonação usada era tão firme e segura que não havia dúvidas sobre o fato de que ele considerava sua esposa uma mulher tão bela quanto uma artista.

Francesa vestia um longo esportivo preto,  acompanhado por um blazer branco para quebrar a cor escura e para dar um tom mais colorido, colocou como acessório uma flor de seda amarela no lado direito do paletó feminino, mais um colar de pérolas, longo, jogado displicentemente no pescoço, maquiagem delicada, cabelos em coque e um sorriso nos lábios. Ela sabia que encantava o seu pequeno público.

Espontânea

A cena foi tão espontânea naquele espaço de tempo em que Francesca surgiu na porta de sua casa que fiz uma exclamação de admiração e disse:  Que bela!

Umberto assentiu com a cabeça em sinal afirmativo, para em seguida dizer que para ele sua mulher parecia uma artista. Até este ponto da narração nada de incomum  quanto ao fato do marido achar a esposa muito bonita.

No entanto, neste caso, é muito significativo o contexto em que se insere o referido casal. Eles vivem há mais ou menos 50 anos juntos, o que certamente em idade nenhum dos dois tem  20 anos. Arriscamos mais de 70 anos.

– ‘Mia moglie sembra un`artista’, repito a frase original dita para mim por aquele italiano alto, de porte majestoso e ao mesmo tempo extraordinariamente objetivo na constatação de que  sua mulher era carismática.

Afeto

A cena me impressionou tanto que até hoje me lembro do episódio e do casal com muito afeto, como duas pessoas que estão além do tempo. A firmeza nas palavras de Umberto, seu porte altivo (passou maior parte de sua vida como militar de carreira), e a jovialidade de Francesca,  me fizeram enxergá-los com um outro olhar.  Os gesto firme do italiano e a jovialidade  da mulher dele eram tão perfeitos, naqueles instantes mágicos, tão bem acabados quanto uma obra de arte.

Isso mesmo! Uma obra de arte.

Tem gente que não fica velho, apenas antigo. Assim são as obras de arte quanto mais antigas mais valiosas.

Provavelmente, Umberto e Francesca viveram sem grandes pretensões de transformar a vida num contos de fada, pelo contrário, enfrentaram os desafios do cotidiano como todo casal que vive um relacionamento duradouro.

Por isso, não vem ao caso associar um elogio ao sentimento que ele, o marido, nutre pela mulher. O objetivo em colocar como ponto de partida a frase de Umberto para este texto foi fazer uma viagem reflexiva sobre a magia do além tempo. Quase um tratado de Física Quântica, rsss…

Sim, sorrio! É ousado tentar escrever algo nada palpável. Na Física Quântica o objeto muda de acordo com a realidade. Imaginem vocês eu arriscando teorias no campo da Física!

No entanto, é maravilhosa essa condição de, numa fração segundos, captarmos a essência dos nossos mais preciosos e perfeitos conteúdos.

Neste momento lembrei do escritor Milan Kundera quando escreve em seu livro, Imortalidade, suas impressões sobre o encanto de um gesto feito por uma senhora de idade, pela leveza e o jeito gracioso com que acenou para seu professor de natação e como esse instantâneo de comportamento a transformou numa jovem de 20 anos, por segundos.

Jovem

De algum modo, Francesca  que não tinha mais 20 anos, revelou a essência de seu encanto na elegância do modo de vestir e na pureza do seu sorriso. Apresentou-se com o frescor da juventude. Bela como uma artista não somente para Umberto, mas para ela mesma porque sentia-se estimulada pela vida.

Concordo plenamente com Kundera quando diz que uma parte de todos nós vive além do tempo e que talvez só tomamos consciência de nossa idade em certos momentos excepcionais, sendo na maior parte do tempo, uns sem-idade.

Assim Francesca  naquele dia encantou Umberto e fez sentido à reflexão do escritor Milan Kundera.

“Graças a este gesto, no espaço de um segundo, uma essência de seu encanto, que não dependia do tempo, revelava-se e me encantava” .

jun_n1_1

Fantasias de Gaudi na arquitetura da Casa Batló

A criatividade do artista espanhol Antoni Gaudi era um delírio à parte. O arquiteto produziu extraordinárias genialidades.

A Casa Batló, em Barcelona, Espanha, é um exemplo dessa faceta na personalidade de Gaudi. Mistura genialidade em arquitetura e delírio criativo do artista catalão, Antoni Gaudi (1852- 1926), em cada metro quadrado da construção, considerada hoje um dos ícones arquitetônico do período moderno na história da arte no mundo.

No início do século XX, um magnata do setor têxtil, Josep Batló, apostou na ousadia de Gaudi e entregou a remodelação de um edifício de 1870 ao artista, para que ele recriasse algo novo. A reforma começou em 1904 e alcançou todos os andares, de cima a abaixo, acrescentou um quinto andar, construiu sótãos, aumentou vestíbulos e deixou as paredes com formas amplas e curvas de modo a não existir nenhum ângulo reto em toda a moradia.

Picasso que conhecia Gaudi comentou sobre a obra desta forma:

“Gaudi construiu uma casa segundo as formas do mar representando suas ondas e tempestades. Verdadeira escultura dos reflexos das luzes crepusculares na água e que dela emergem formas imitadas pelo vento”.

Antoni Gaudí trabalhou essencialmente em Barcelona, a sua terra natal, onde também estudou arquitetura. Originário de uma família não muito abastada, Gaudí tendeu para a procura do luxo durante a juventude, no entanto na idade adulta e no final da vida essa sua tendência diluiu-se por completo. Quando jovem aderiu ao Movimento Nacionalista da Catalunha e assumiu algumas posições críticas face à igreja; no final da sua vida essa faceta desapareceu também. Gaudi nunca se casou e morreu aos 72 anos, vítima de atropelamento.

Gaudi, obcecado por luminosidade, revestiu irregularmente de cerâmica azul um poço luz no interior do edifício, que vai do azul cobalto até o mais claro nesta tonalidade. Na medida em que a luz natural chega na claraboia a distribuição da claridade é equilibrada de cima para baixo. Para completar o efeito, as sacadas, as janelas são grandes nos pisos inferiores e vão ficando pequenas na medida que alcançam o pátio de luz.

A casa, na verdade, lembra a vida marinha com vidros imitando moluscos e paredes onduladas e uma cor azul que termina num intenso cobalto e começa no claro infinito.

As interpretações para estas formas onduladas e o tom acentuado do azul dado por Gaudi, tem várias histórias ao gosto popular: para alguns o objetivo do artista era o de edificar um hino simbólico à lenda de São Jorge, patrono da Catalunha, em sua mitológica vitória sobre o dragão.

 

Outra versão é que se trata de uma alegoria da festa de carnaval. Por fim, permanece que ele teria se inspirado na beleza do mar.

Seja qual for a interpretação dada por Gaudi, a construção é espetacular. O pátio de luzes da casa é autêntica maravilha da arquitetura moderna, do início do século XX.

Os vidros coloridos das janelas lembram moluscos, a escada que conduz ao piso principal se retorce como o esqueleto de um dinossauro fossilizado e o muro sinuoso é pintado de uma forma que parece um mosaico e mostra alguns reflexos e superfície similar às paredes que lembram cavas erodidas pela água.

 

Visite por aqui a casa e envolva-se no delírio deste arquiteto modernista que não mediu esforços e nem impôs limites a sua criatividade.

bruno walpoth sculpture

Inner setting…

Life is a highway of many lines, dangerous curves, warning signs, detours, bumpy roads, peaceful ways, and it can also be colorful in a moment and black and white in another. I have emotion in my thoughts and reason in my heart. I am many countries, even many planets. My orbits challenge the laws of physics. Inside me I can be characters of dramas and comedies.

My imperfections clash with my virtues. This is a constant battle. I am an artist in the art of being me. I draw my lines, I make my painting, sketches, try to find a shape, a line that takes me to discover new possibilities to reinvent myself.  There are moments when I want to erase certain things, but a flaw is left. It is not possible to turn invisible what has been already done. It is always there even if it is left in a corner, under a shadow; it reminds me that I should not stop being my essence. My essence is both prison and freedom.

I am full of questions and few answers.

I try to define myself but this is a very complex plot to be translated. I give myself the luxury of liking and disliking me. I need to be sewed when I try to unfold myself in many roles. My diversity is a byproduct of what I am able to create. I move through dream and reality, love, and fears.
(Sculpture by Bruno Walpoth)