Video instalação do artista argentino Sebastián Diaz Morales. Suspension. 2014

Vamos flanar em “Pensageiro frequente” de Mia Couto

O flanar foi a próposito para definir aquilo que eu senti lendo "Pensageiro Frequente" de Mia Couto. Um preambular pelo mundo, caminhar sem rumo observando a vida.

Isto é, Mia Couto me fez flanar sobre Moçambique, sul da África, por intermédio das palavras que ziguezagueavam e definiam o seu país de origem. 

E seu texto ahhhh…. Que texto maravilhoso para definir suas emoções e os lugares em que vive! 

“O Índico não é apenas da ordem geográfica: é um guardião de história de povos diversos. Viagens antigas não trocaram apenas genes, mercadorias, línguas e culturas.(…) Os adeptos da ‘pureza’ genética e/ou cultural que se desenganem: o que somos hoje é o resultado de mestiçagens antigas, tão velhas e complexas que nem sempre lhes seguimos o rasto.”

Imagem retirada da internet

Uma frase tão clara e simples e me faz lembrar das guerras com o objetivo de extermínio de um povo: como o genocídio de Israel e contra Palestina. Na presunção dos donos do poder e da guerra, com as mãos sujas de sangue, acreditam que podem banir da face Terra  um determinado ‘gene’. Assim foi com Hitler e seu discurso de ‘pureza’ de raça, que por ironia do destino, hoje o poderoso de Israel está  imitando o ‘austríaco insano’, isso sem o aval da maioria dos judeus de bom coração! E o que pior: o mundo assiste esse filme de terror e cruedade, pasmem, sem fazer nada contra, cujo protagonista principal é a indústria bélica dos EUA.

Mas voltemos aos nossos Pensageiros Frequentes de Mia Couto – o escritor e sua poética. Vale lembrar, que em Terra Sonâmbula Mia Couto fala da dor com poesia e emoção. Mas o que mais me apaixonou em seu livro de contos e crônicas que foram republicados, considerando que eles foram originalmente concebidos como revisa de bordo das Linhas Áreas de Moçambique. 

 

É poesia em prosa quase que inteiramente o livro. Para escrever sobre Maputo, sua cidade natal, ele coloca como título “A cidade na varanda do tempo”.  Pensem e sintam o conceito na ‘varanda do tempo.  Quando trata das chuvadas de fevereiro ele lembra da resistência das árvores.

 

Resistem também algumas árvores. Algumas delas são monumentos.  A velha phama do Xipamanine  que deu nome ao bairro. 

A kigelia  frente a fortaleza: quantas histórias, quantos mitos? Vale a pena visitar as cidades africanas por via das árvores que encerram lendas e carregam mais histórias que folhagem.

O texto de Mia Couto não é inspirador? Recomendo a leitura desses ‘pensageiros’. Tão inspirador que quando resolvi escrever sobre o livro lembrei da palavra flanar tão conhecida em leituras de arte e literatura  porque era usada pelo escritor e poeta francês do século XIX,  Charles Pierre Baudelaire, que usou flâneur  para tentar descrever o observador apaixonado. O verbo hoje é usado em diversas línguas, incluindo o português: flanar. 

“É um imenso prazer fixar residência na multiplicidade, em tudo o que se agita e que se move, evanescente e infinito: você não está em casa, mas se sente em casa em toda parte; você vê todo mundo, está no centro de tudo, mas permanece escondido de todos.”  fonte  AH (leia aqui)

clique na foto para visitar o site do artista

Que acham? Não maravilhosamente inspirador? De Mia Couto a inspiração foi até Baudelaire e continua, meus caros leitores. A foto principal que ilustra o artigo, eu a captei numa Bienal de Veneza, numa instalação do artista  argentino Sebastián Díaz Morales cuja obra é Suspension – 2014. Já usei-a várias vezes no site porque simplesmente é inspiradora para mim. Desconectada do seu real conceito, cada vez que a uso é para definir um flanar pelo mundo. Como se homem adquirisse asas e estivesse em pleno voo para olhar o mundo pelos sonhos. 

Não é fantástica a capacidade da arte nos estimular à inspiração e buscar novos conceitos para definir uma emoção!

Todas as frases acima são retiradas do livro Pensageiros frenquentes”.  Como Mia Couto, dos lugares da Terra eu prefiro os de água. Penso que é porque somos quase 80 por cento água em nosso corpo. Amo banhar-me nas águas de rio e mar e faço isso com frequência porque na minha fase atual, mais antiga, dei-me ao luxo de viver pertinho das águas maravilhosas da costa brasileira banhada pelo Oceano Atlântico, testemunho de tantas aventuras para chegar às Américas e morada final de muitos escravos vindos da África.  

” Um dos meus irmãos, quando menino e em estado de birra, ameaçava: – Vou fugir para Inhaminga. O que ele queria dizer era que ia para além do mundo, para onde já não havia estrada nem distância. Ele ultrapassava o limite do regressável e, assim, o nosso amor por ele era posto à prova. Jogo sem risco: o amor era maior que toda a distância.”Mia Couto.

Captura/ frame Utopia e Barbárie

“Utopia e Barbárie” ontem, hoje e como será o futuro?

O filme Utopia e Barbárie é uma "história sem ponto final" como afirmou o cineasta Silvio Tendler nesse documentário produzido em 2009.

Hoje atualíssimo com as guerras, principalmente entre Israel e Palestina. 

O cineasta reconstrói o mundo a partir da segunda guerra mundial baseado em sua própria experiência de vida que o fez documentar, coletar imagens e realizar entrevistas com personalidades memoráveis durante quase 20 anos sobre os sonhos e utopias de sua geração, da qual eu também faço parte. Uma geração que tinha como lema  “Paz e Amor” e provocou mudanças no comportamento social nas décadas 60, 70, 80. 

“Utopia e Barbárie” trata exatamente da mudança de modelo tendo como pano de fundo as guerras e sua crueldade a  civis inocentes  em nome de utopias individuais,  por ganância e para aplacar o ego de governos autoritários.  

Pontua importantes fatos que marcaram época como o Holocausto, a Bomba de Hiroshima, Faixa de Gaza, Israel e Palestina, as ditaduras militares da América do Sul,  numa roteiro tão próprio e genial de quem sabe usar o cinema como arte e falar sobre as tragédias humanas com poética e sensibilidade. Na literatura, Mia Couto é mestre no jogo das palavras e seu texto é uma poesia trágica e emocionante em Terra Sonâmbula.

A narrativa de Silvio Tendler nesse documentário toca direto no fundo do coração e te obriga avaliar a humanidade  e o futuro.  Senti vontade de assistir novamente logo após a guerra na Faixa de Gaza e  porque lembrei de declarações visionárias sobre Israel e Palestina .

O filme está disponível gratuitamente no Youtube,  canal do cineasta – Caliban Cinema e Conteúdo, veja aqui o Trailer.

 

Silvio em ação dirigindo Brizola, um novo documentário
“Quando você viveu a pior das humilhações, a vergonha que tem de mais íntimo em você mesma,  é a verdadeira opressão. Você não viverá mais como os outros.  Aos poucos fui investindo na política, porque se não fizesse algo para mudar esse mundo, qual seria o sentido de eu ter escapado?”.  cineasta Marceline Loredan. 

Odocumentário tem cenas inesquecíveis e depoimentos comoventes como da Sra. Wakigwa – sobrevivente da Bomba Atômica, que relata que a imagem que mais chocou a ela: uma mãe embalando um bebê degolado e pedindo água nos escombros depois do bombardeio em Hiroshima. A fala da cineasta Marceline Loredan, sobrevivente do Holocausto, é também emocionante! As duas nos  dão lições de resistência e humanidade.

Tendler  também transita pelas lutas de hoje que são fragmentadas. “Os novos campos da batalha são a internet, as mídias alternativas e os fóruns sociais”.  É claro além das guerras que são lucrativas para quem fabrica armas. (imagem retirada do filme)

 “Somos aquilo que nós lembramos”. 

“Não há liberdade sem conhecimento. Não há paz sem liberdade. Paz e liberdade devem andar juntas!

Um trecho do monólogo do filme israelense Kedma, de 2002, do cineasta Amos Gitai, profetiza para os dias de hoje o que foi dito pelo camponês árabe.

Ouçam bem, permaneceremos aqui como muralhas, apesar de vocês! Lavaremos pratos em bares. Serviremos copos aos senhores esfregaremos o chão das cozinhas para arrancar o pão para os nossos jovens, de suas garras miseráveis! Permaneceremos aqui como muralhas, apesar de vocês! Sentiremos fome, andaremos aos farrapos… Mas nós os desafiaremos.Permaneceremos aqui como muralhas, apesar de vocês! Escreveremos poemas. Nossas passeatas encherão as ruas. Lotaremos as prisões com nosso orgulho! Seremos pais de crianças rebeldes!”

A turma do EGC conseguiu reunir-se presencialmente, em maior número, em 2023. Eu ainda não consegui e muitos outros também.

 Silvio Tendler é renomado documentarista, com mais de 300 filmes em seu currículo de cineasta, entre eles o premiado Jango, que conta a história do golpe militar que resultou na ditadura também chamado “Os anos de chumbo no Brasil”. Muitos de seus memoráveis documentários estão disponíveis gratuitamente para o público em seu canal, no Youtube. Conheci Silvio Tendler  virtualmente  pelo EGC. Um grande amigo admirado por mim e por todos que o rodeiam. Idealizou os Estados Gerais da Cultura – um movimento de artistas, intelectuais e de todos, todas e todes  que foram contra o aniquilamento da cultura realizado durante o governo do inominável. Nosso lema é e será sempre porque continuamos em busca disso  “Com arte, ciência e paciência mudaremos o mundo”. 

Utopia e Barbárie é um filme visionário que deveria ser exibido em todos os espaços comunitários como arte transformadora, igrejas, escolas, empresas, governos, terreiros, para debate, como um alerta, como advertência  sobre os perigos do retrocesso!

Perguntei ao meu amigo Silvio: o mundo gira em ciclos de violência desde os tempos remotos, acredita que poderemos mudar o mundo? 

Querida Mari,
Nos conhecemos nos Estados Gerais da Cultura,
Um grupo que criamos para abraçados virtualmente nos protegermos do Virus e do verme. Das boas coisas que fiz na vida.
Agora em meio a essa guerra insana ( como se fosse possível haver sanidade em alguma guerra, mesmo os que lutam do lado da razão, em algum momento, vivem atos de desrazao levados pela violência da guerra), voltamos a nos encontrar.
Sou um judeu-judeu e gosto do meu estado e a forma de ser mas não aprovo nadinha os maus modos dos dirigentes de Israel.
Nada jamais justificará o ataque de palestinos militantes do Hamas a civis em Israel. São tão canalhas que escolheram como alvo Kibutz onde as pessoas ainda sonham com utopias civilizatórias. São bárbaros merecem ser extipardos da terra sem dó nem piedade. Mas a reação Bárbara das autoridades israelenses foi a pior possível e mais injustificável ainda.
Será que meus mortos serão mais mortos que os teus? A dor de uma mãe palestina é a mesma dor de uma mãe Judia e a Lei do Talião (“olho por olho, dente por dente”) não cabe mais entre nós.
Israel só existirá, se fizer a paz. Nesse ritmo, separa cavando sua sepultura. Não quero ajudar a enterrar uma cultura milenar, minha cultura milenar.
Quero replantar o jardim das oliveiras e recriar um mundo de paz que um dia existiu e voltará a existir.
Mesmo em meio a essa terrível guerra fratricida, continuo um utopista. Com amor Silvio Tendler, cineasta utopista”.

  


 


 

Krenak

É mais que urgente colocar em prática ‘Ideias para adiar o fim do mundo’ de Krenak!

O filósofo indígena, ambientalista e ativista Ailton Krenak nunca perdeu o foco sobre a vida. Mais do que urgente colocar em prática suas "Ideias para adiar o fim do mundo', e salvar o planeta da barbárie humana!

Esse líder indígena foi o primeiro dos povos originários a ser eleito pela Academia Brasileira de Letras e pasmem, neste outubro de 2023, só agora no século XXI. Os povos da floresta, originários  estavam aqui antes, muito antes do colonizador, antes de 1500, mas foi preciso uma pandemia, que quase dizimou totalmente a humanidade,  para que a fala de Krenak fosse mais ouvida sobre a sabedoria ancestral de quem vive diretamente integrado com a nossa mãe, a Terra.  

Já estava em tempo dos imortais da ABL valorizarem as histórias e as letras  dos povos indígenas que no Brasil foram punidos, no passado, de se comunicarem em sua própria língua. Apesar que Krenak, o nome de sua etnia, que significa deitar a cabeça no chão, tocando a terra, já remete à ideia de imortalidade.

A luta de Krenak não é de agora. Em seus 70 anos tem muita história para contar para o mundo. Entre as tantas, a mais comovente delas  foi o  discurso memorável na Assembléia Constituinte, em setembro de 1987, para garantir os direitos aos indígenas na Constituição de 1988. Vale rever o vídeo sobre esse momento histórico (Achei essa maravilha no Youtube como documento).

Ideias para adiar o fim do mundo  é uma adaptação de duas palestras e uma entrevista realizadas em Portugal entre 2017 e 2019 e vendeu já mais de 90 mil cópias e foi traduzido em sete idiomas.  Além desse,  A vida não é útil, o Amanhã não está à venda, Lugar onde a terra descansa, têm assinatura de Krenak, entre outras publicações.

 

 

 

“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então pregam o fim do mundo com uma possibilidade fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.

Krenak conta, numa entrevista no programa do Bial, que o título do livro foi resultado de uma história irreverente quando foi convidado para dar palestra em Portugal. “Eu estava juntando cisco no quintal e minha mulher me chama da cozinha dizendo que eu deveria repassar a eles o título da palestra”,  relata. Assim, como se não acreditasse que aconteceria o evento e meio que irreverente pensou na frase. “Diga para eles que serão ideias para adiar o fim do mundo”, disse ali varrendo o quintal. Quatro meses depois enviaram a passagem e o convite para expor suas ” Ideias para adiar o fim do mundo”.

Ailton Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, onde a natureza foi afetada pela ação industrial do homem para extração dos minérios, infelizmente. “No livro, o líder indígena critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, de uma humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também nosso avó”. (parte do resumo da orelha da publicação)

 

A minha admiração pela sabedoria ancestral dos povos indígenas começou  quando realizei, na década de 90, uma exposição com a fotógrafa Fernanda de Castro intitulada a Farmácia da Floresta e visitei, entrevistei, diversos indígenas das etnias Kaigang e Guarani, nas Reservas de Mangueirinha e Ortigueira no Paraná. 

Dali pra frente fiz mais trabalhos com indígenas durante minha permanência na Secretaria do Meio Ambiente do Paraná, do governo Jaime Lerner. Entre eles, a realização vídeos para valorizar a criação dos Centros de Cultura dentro das reservas indígenas do meu estado. 

 Ao grande Ailton Krenak a nossa homenagem! Que suas ideias sejam transportadas pela força do vento para todos os cantos da Terra porque o que ele diz é para comungar em reflexão permanente: ” A água não é um recurso, é uma entidade”.  

Se todos entendessem a profundidade dessa reflexão de Krenak, como um conceito divino não mataríamos nossos rios de uma forma tão leviana e gananciosa.  A água é um ser espiritual, vivo e precioso e dela dependem todos os seres vivos deste planeta! 

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Ailton Krenak ci fa riflettere ciò che è comunità e quello che è collettivo

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A arte como linguagem de expressão

A arte (do latim ars) engloba todas as criações realizadas pelo ser humano para expressar ideias, emoções, percepções e sensações.

Quando as mesmas causam impacto quando a obra final repercute ao ser visualizada, surgem questões de ordem objetivas quanto subjetivas, que merecem uma análise profunda de quem as cria e principalmente de quem as observa.

Infelizmente muitas vezes quem as vê, não exterioriza sua verdadeira avaliação critica, pelo receio em contrariar talvez uma maioria – que por sua vez faça o mesmo, ou pela indiferença que a mesma lhe produz. Quando exterioriza, fruto interior de uma comunhão de ilações que tocaram seu íntimo por algum motivo, nem sempre encontra eco num universo crítico de uma comunidade que a analisa e a observa (a arte).

Ausência de avaliações

Talvez por esta aparente ausência de avaliações concretas e externas de um número maior de espectadores, a arte não faz parte do cotidiano de um oceano de pessoas. Outrossim pode ser o motivo, além da vida ritmada pelo trabalho, pelos problemas, pela contemporaneidade da rotina moderna, que a arte não é democrática a ponto de merecer o olho crítico do mundo.

Muitos se questionam (como eu) se todas as expressões plásticas podem ser consideradas artísticas em seu conceito mais profundo possível. Entendo, pelo conceito de quem as cria, que a arte envolve a “não arte” (as obras que carecem de senso estético e harmônico) pois sendo força interna criadora, é movida pelo impulso de reproduzir uma emoção subjetiva.

Apropriação do belo

Esta emoção, que impacta uma coletividade, nem sempre tem em si, uma apropriação do belo, da perfeição, da ordem, da harmonia ou seus revezes. Tem apenas uma essência que qualifica como um “insight” que reverbera em si para exteriorizar num todo. Não tem o condão de avaliar o senso de uma verdade absoluta enquanto beleza com senso estético na acepção da palavra. Nesta condição, não existe o crivo da razão que avalia criticamente seu trabalho tendo como parâmetros tais conceitos. Apenas dá forma ao sentimento que lhe produz, criando o produto final que chamamos de arte, tendo ou não, esta configuração.

No entanto, sob a ótica de quem observa, meu conceito (até juízo de conhecimento em contrário) de arte, não envolve a “não arte”, mesmo me questionando sobre quem tem a dualidade para atestar com certeza no que ela consiste e assim se divide? Me permiti raciocinar que a arte produz um sentimento que emociona – pela ponte das emoções às refrigerações dos dias diários, densos e opressores – um olhar interno que relaxa pelo gozo das sensações e que nos remete ao nirvana de nossas buscas sublimes ou nos coloca nos charcos de um lodo impuro e desprezível.

Intimamente, procuro analisar e subliminarmente crer, que arte em mim, é o melhor das sensações que um paraíso pode repercutir, onde a beleza estética, o padrão harmônico e equilibrado é condição para o meu crivo de razões sentir! Aconteceu-me isto recentemente, ao vislumbrar uma pintura inédita de Simone Campos, pintora paranaense de grande repercussão, onde sua arte subjetiva, apaixonadamente reverberou em meu ser toda sua criação, traduzindo um belo (sob minha ótica) indefinível, ante o caráter lúdico e artístico que meu olhar absorveu.

Impacto

O impacto foi tanto, que lágrimas vieram em meus olhos, sem eu querer ou prever, cujas mesmas fiz o possível para que Simone não percebesse (uma arte de meu ego sem chances de naquele momento, exteriorizar). Também, em uma aula de Raquel Taraborelli, outra mestre do impressionismo brasileiro, tive uma experiência parecida, ao vislumbrar uma bela tela em seu ateliê quando ministrava os detalhes de sua perfeição técnica e artística.

Sensação maior ainda tive, ao vislumbrar pela primeira vez, o Juízo Final, o teto e a Pietà do maravilhoso Michelangelo na Capela Sistina, assim como as obras de Rafael Sanzio (meu preferido) e Bernini e seu baldaquino, no Vaticano, na Itália. Tão ou mais importante reação tive nas obras de Claude Monet, retratando seus atemporais jardins de sua amada residência em Giverny, França.

Por outro lado, ao vislumbrar as obras do pintor irlandês Francis Bacon (1909-1992), em uma Bienal de Artes de São Paulo, percebi que ele acentuou distorções sobre imagens e figuras que seu olhar mantinha com as angústias e em face da morte (talvez a psicanálise de Lacan explicasse esta incompletude radical ante um suposto vazio de sua existência), as quais me produziram um choque, fazendo com que o espírito de suas emoções densas, reverberassem agressivamente em meu eu interior, a ponto de me desequilibrar negativamente ao visualizá-las.

Assim, por esta minhas experiências e outras, creio que quando a arte repercute positiva ou negativamente, ela prospera nestas mesmas intensidades. Ela produz um sentimento de atração (por querê-la possuir) ou de repulsão pela completa indiferença, podendo chegar às raias, dependendo do grau deste impacto negativo, de sua própria destruição.

Feedback

Tenho para mim por outro lado, a tese de que, quando o observador não entende uma criação de um artista (como por exemplo numa avaliação crítica quanto aos artistas expositores da Bienal de Veneza nesta edição de 2015), é porque não repercutiu-lhe internamente, não lhe atendeu suas expectativas subjetivas, não lhe deu um feedback que esperava, e nesta condição, não reputo como arte em sua mais pura essência, mas talvez um movimento nesta direção, um mecanismo que direcione seu ego para algo que lhe inclua, mesmo com o risco de lhe excluir. Assim, não incluo a “não arte” e não a venero como arte, na acepção da palavra! Talvez minhas palavras aqui, sejam uma avaliação critica que redunde numa “não – arte”, quem há de saber?

A arte por outro lado, pode inserir um contexto objetivo, quando imediatamente o resultado de sua observação causa uma emoção externa a ponto de ser percebida, seja por atos, seja pelo apelo linguistico que ela produz, como os impactos que tive positiva ou negativamente perante às obras que mencionei. Pode por outro lado, produzir um resultado não exteriorizado, mas sentido internamente pelo observador que poderia lhe produzir um deleite, uma sensação, ou um universo de sensações prazerosas (ou não), que lhe remetessem inclusive a atavismos inconscientes, buscando um arquétipo antropomorfo, num conceito subjetivo.

Sensações

Daí a conclusão de que a arte pode ser transmitida de várias formas e neste mesmo grau, sentidas, por meio de uma grande variedade de linguagens como a pintura, a escultura, a arquitetura, a escrita, a dança, a música, o cinema, em suas multi combinações. Penso que também as variedades artísticas de design, inclusive provindas da era computadorizada e outras reverberações, incluem-se nesta linguagem, pois o processo criativo se elabora e se consome, na certeza de que haja possibilidade de expressar-se pelas emoções, em ideias, objetivando um significado em quem cria e em quem observa.

Se historiarmos os períodos que a arte existiu desde que o homem assim se refletiu, veremos que a arte clássica na civilização ocidental era qualquer atividade que envolvesse uma habilidade especial com regras definidas, sujeita a um aprendizado e a um desenvolvimento técnico. Tão significativa era, que Platão definiu-a como uma capacidade de fazer coisas de modo inteligente através de um aprendizado, sendo um reflexo da capacidade criadora do ser humano, enquanto Aristóteles a definiu como uma disposição de produzir coisas de forma racional.

Encontraremos também no REnascimento uma significativa alteração destes conceitos, em que as obras elaboradas foram conceitualmente separadas do objetivo produtivo, tendo a arte um cunho de ciência, onde a elite pensante intelectual era fim, inobstante a arte desta feita, merecer um aporte de onipotência financeira e neste encargo, demonstrar poder e riqueza de quem a colecionava.

Neste andar sem tréguas pela história, a influência absoluta do iluminismo nos trouxe a arte outrora elevada à ciência, sendo substituída pela emoção e pelo sentimento, cuja estética, foi o termo empregado para defini-la, num padrão de sensações (sendo que o próprio termo “estético” vem do grego traduzindo-o como “sensações”).

Não por acaso, o romantismo nesta mesma linha, valorou a criatividade do artista e o quanto a sua liberdade em criar lhe erigiriam, se merecesse, à condição de supremo artista, cuja razão jamais seria norte a lhe moldar, embora a razão a meu ver, reconhecesse que sua expressão atendia aos melhores padrões estéticos. Muito interessante relevar o dualismo que Charles Baudelaire conceituou a arte, entendendo subjetivamente que nela se encerrava um corpo e uma alma, transfigurados pelo sonho lúdico ao lado da realidade que a emoldurava.

Em um tempo mais contemporâneo, Arthur Schopenhauer, ao lado de outros, conceituaram a arte pela arte, com um fim em si mesmo. Num complexo sistema de interpretações, não há como olvidar também a contribuição maravilhosa de Jung e Freud, os quais entendiam que a arte era uma exaltação do ego de seu criador, o qual exprimia através dela, seus sonhos simbólicos e repressões dinamizadas pelos desejos reprimidos, originando inclusive destas sensações, a figura famosa do arquétipo de Jung, que seria talvez alçar a arte, à uma representação subjetiva material destes símbolos.

Walter Benjamin

E ainda não fosse o bastante para ressaltar no que consistia a arte, Walter Benjamin e sua escola, refletindo sobre a modernidade e suas consequências na sociedade, obtemperou que a massificação cultural (em todos os seus sentidos) influiu a arte de tal forma, que o objeto criador foi nela fundido a ponto de ser banalizado, cujo resultado era uma arte (se é que nesta condição poderia ser assim reconhecida) sem identidade própria e alçada a um ostracismo, já que sua aura (do objeto de criação) teria sido perdida. Estaria aí ele vislumbrando a “não-arte” sepultando a arte estética e harmônica?

Exercitando a arte de sentir, me permito concluir que arte é uma habilidade interior, emergindo de uma força criadora com status de expansão divina, transcendendo a emoção em sentimento e que atende a um modelo estético de harmonia, equilíbrio e beleza, cujos padrões repercutem tanto em quem cria como no observador, um prazer de sensações venturosas. Pode ser ela aprimorada, resultando de aprendizagem externa que agregue a estas tendências, uma perfeição técnica eficaz.

Ineditismo

Assim, reputo, aliando-me a muitos, que “qualquer coisa” não pode ser considerado arte em seu contexto original, onde esta “não arte” jamais seria alvo de um crédito que ela não possui. Seu suposto “ineditismo” oriundo talvez de uma excitação com níveis leves até máximos, culminando em expressões artísticas de bizarra imaginação ou aberrantes fantasias, nunca poderia ser assim atestada.

Em derradeiro, um sistema em que a reconhece como tal, deve se submeter ao crivo de emoções inteligentemente transfiguradas, cujos sentimentos são afinados com o belo, com o estético, com a ordem e enquanto “fato artístico”, possui parâmetros externos objetivos que merecidamente a consagra.

Em derradeiro, entendo que este mesmo sistema, jamais deve permitir que se faça arte com o objetivo de ser valorada economicamente para este fim, e sim reconhecer que a arte tal qual ela se insere, é uma dádiva de talentos, uma criação habilidosa e útil, que evolui numa trajetória geométrica considerável ao longo do tempo, tendo o poder de transformar um mar de firmamentos sombrios em um céu de divinos jardins celestes.