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Missa da Benção em Salvador. Extraordinário sincretismo

Se fosse no passado os participantes e o padre seriam queimados na fogueira pela Inquisição, tal é o sincretismo entre os ritos católicos e africanos. Estamos falando da missa mais original celebrada no mundo, a Missa da Benção. certamente, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Salvador, na Bahia.

A celebração religiosa é emocionante, imperdível. Isso para quem é ecumênico e multidisplinar em suas crenças. Pode tornar-se chocante para os mais conservadores que acreditam que a instituição religiosa a que pertence é a única verdade existente.

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Igreja erguida pelo fervor dos escravos e alforriados.

A Missa da Benção coloca o catolicismo e o candomblé lado a lado e é rezada todas às terças-feiras, às 18h, e aos domingos, às 10h, ao som dos atabaques e cantos africanos, com a participação de padres e pai-de-santo.

Uma celebração que somente no Brasil poderia acontecer e, talvez, para lembrar sempre que da triste história da escravidão em terras brasileiras. Também da humildade e religiosidade desse negro que sofreu no Pelourinho, pelas mãos de brancos algozes.

História da Igreja

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Segundo fonte da Wikipedia , os negros escravos e alforriados eram muito devotos de Nossa Senhora do Rosário.

De acordo com frei Agostinho de Santa Maria, desde os inícios do século XVII os escravos e forros veneravam Nossa Senhora do Rosário num altar da Sé da Bahia, em Salvador. Como outros grupos da colônia, também os negros se organizavam em agrupações religiosas de ajuda mútua, as chamadas irmandades ou confrarias. Na segunda metade do século XVIII, quase todas as freguesias de Salvador possuíam alguma irmandade de negros.

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Salvador foi formalmente constituída em 1685 (…).As irmandades de negros começavam reunindo-se nos altares laterais de igrejas matrizes ou conventuais, mas em 1704 a do Rosário reuniu o dinheiro necessário e recebeu a permissão do arcebispo DSebastião Monteiro de Vide para a construção de uma igreja própria nas Portas do Carmo.

A construção da Igreja do Rosário foi um processo lento, pois a irmandade era relativamente pobre e os irmãos da confraria doavam seu trabalho para a construção em suas horas livres (…)

Vídeo que mostra a missa quase inteira

Esse vídeo é amador. Mas foi uma maneira que encontrei para registrar algo tão profundo e, certamente, só é possível vivenciar no Brasil. As imagens estarão comigo até o final de minha vida, sobretudo o momento do ofertório. Maravilhoso!

 

 

R. Magritte - Golconda

Terapia e autoterapia – a arte do autoconhecimento

Como muita gente no Brasil, na adolescência frequentei o psicólogo. Não porque tivesse grandes problemas, problemas impossíveis de ser resolvidos ou porque alguém pensou que eu não fosse normal. Na realidade, fui ao psicólogo porque sou normal.

E adolescente, como tantos outros experimentei essa fase hormonal, esta transição entre ser criança e vida adulta… a aproximação, a realidade e comecei e notar que dentro de mim tinha muitas e muitas dúvidas.

Preconceito

Eu falo isso, porque noto que aqui na Espanha existe um certo preconceito com a palavra psicólogo ou terapia. Muitos dos meus amigos que vão hoje ao psicólogo não têm coragem de falar em nenhum dos seus círculos que fazem terapia.

E isso foi um fator que me chamou a atenção. A terapia não é vista nem encarada com bons olhos, e muitos entendem que quando uma pessoa é derivada ao psicólogo é porque sofrem de algum problema ou transtorno bastante avançado.

Às vezes chego a pensar que algumas dessas pessoas que eu conheço chegaram a esse ponto porque na hora certa não foram ao psicólogo. Se eu pergunto por aqui, muitas pessoas dizem que preferem falar com um amigo a pagar um profissional para serem escutados. Ledo engano. O psicólogo não substitui o amigo nem o amigo substitui o psicólogo.

Um bom psicólogo

O certo e aonde vou com tudo isso é que um bom psicólogo no momento certo pode ajudar muito agente entender a nós mesmos e esforçarmos e nos tornarmos aquilo que queremos ser.  Obviamente o psicólogo vai te dar ferramentas, mas o único motor de mudanças nisso tudo é você. E você só vai começar a entender o que te falta ou o que você quer, ou quem você quer ser, se você se conhece.

Platão, um dos filósofos mais lidos e estudado de todos os tempos, é um dos pensadores que fala sobre o autoconhecimento. Conhece-te a ti mesmo. Tarefa difícil, sem dúvida. Muita gente quando é perguntada sobre si mesma não sabem nem responder: não sabem o que gostam, o que admiram, o que as motiva ou que tipo de pessoas querem ser. E isso é normal.

Principalmente na adolescência. Se nós adultos, que somos seres  cambiantes e inconstantes não sabemos e não nos conhecemos, como vamos deixar que um adolescente se enfrente a todos estes desafios sozinhos?

Não pretendo defender a terapia na adolescência, senão defender a terapia nessas fases da vida em que estamos mais perdidos que o normal e que uma ajuda profissional orienta a encaminhar essas decisões.

Encarar a pessoa que vejo no espelho

O psicólogo na minha adolescência, com o meu pouco conhecimento e experiência de vida, me ajudou muito a encarar essa pessoa que vejo diariamente no espelho. Me plantou a semente sobre quem sou e aonde quero ir. Junto com elas muitas pessoas no meu entorno me ajudaram obviamente, mas não com todo o conhecimento que se requer.

Com este trabalho feito anteriormente e com as ferramentas na mão pude caminhar em frente e começar a fazer um trabalho de autoterapia: entender o que me deixa feliz, o que me deixa triste ou o que me deixa frustrada. E isso é o motivo do porquê que estou escrevendo esse texto.

Frustração

Esse domingo, passei por uma situação realmente frustrante no final da minha tarde e me alterei tanto pela impotência de pode-la resolver que no caminho de casa me correram umas lagrimas.

Hoje, vendo a coisa já com outra perspectiva, o tema não é tão grave, mas naquele momento teve a capacidade de alterar de certa forma meu estado de ânimo.  O curioso é que quando entrei no metrô e estava metida na minha dor e frustração, comecei a respirar e dizer a mim mesma: isso tem solução e você não pode deixar que estes terceiros, que estas pessoas alterem o teu estado de humor.

Tinha uma cara de tão brava que notava que as pessoas no metrô me olhavam. Era visível o meu enfado. Foram 30 minutos no trajeto de casa em que comecei a dialogar comigo mesma: dizia que tinha coisas que não estavam na tua mão, mas o último que você pode deixar é que certas pessoas determinem seu estado de ânimo. Sei que tinha pilates mais tarde e que se chegasse em casa para resolver o tema perderia pilates e ficaria mais frustrada.

Diálogo comigo mesma

Então, basicamente, depois de todo esse diálogo comigo mesma, quando sai do metrô estava relativamente mais calma e fui pra casa com algumas decisões tomadas: primeiro que não ia perder pilates, que o tema podia ser resolvido depois e isso não implicaria e nenhum problema.

Segundo que ia a pilates correndo para de certa forma soltar toda esta frustração que tinha dentro de mim transformando em energia para o meu próprio benefício. E terceiro que não ia pensar no tema até voltar a casa porque isto só me causava ansiedade e não tinha porquê. E por último, olhando com perspectiva o tema realmente não era grave, já que tinha solução, ainda que me sentisse lesada.

Exercitar-se

De repente fazer esse exercício não foi fácil, mas foi muito produtivo. Já não é a primeira vez que faço isso, mas quem sabe ontem foi um desafio pelo tamanho da questão. Assim mesmo, passado todos estes meses lendo sobre filosofia, literatura junto com a minha passagem pelo psicólogo pude ver o bom que foi ter tido um profissional na minha vida.

No fim do dia, depois de sair a correr, fazer pilates, voltar para casa correndo e fazer ligações para resolver o problema, me senti orgulhosa de mim mesma e fui para cama feliz, fazendo que o meu fim de tarde que parecia que se ia torcer, se tornasse agradável de novo, porque soube identificar o problema, gerenciar meus sentimentos e aportar uma solução. Ou seja, depois de tanto tempo indo a terapia, fui capaz de fazer autoterapia comigo mesma e entender vários pontos de mim mesma e da minha frustração.

Autoconhecimento

Coisas como estas passam a diário na nossa vida e vemos como muitas pessoas soltam para fora a sua frustração de forma incontrolada. Até os mais controlados perdem o controle.  E aqui não se trata de dizer que as pessoas têm que ser controladas sim ou sim. O que quero dizer é que o autoconhecimento proporciona ferramentas para entender e gerenciar o que se passa com nós mesmos e isso é muito importante para determinar o teu nível de felicidade no fim do dia.

O psicólogo foi essencial para entender isso. Outra parte essencial foi eu mesma, como pessoa que queria mudar de atitude e ser uma pessoa mais positiva e emocionalmente inteligente. O resto do trabalho foi eu comigo mesma, os livros e as horas de solidão, reflexão contínua sobre o EU, trabalho continuo para seguir adiante.

Encarar a si mesmo sem complexos é fundamental.

Tendemos pensar que os nossos medos e dúvidas são únicos e não passam com os nossos amigos. Ledo engano. Passa e mais do que pensamos. Não é porque eles não falam ou não se manifestam sobre o que está acontecendo que isso não ocorre. Eu sigo tendo muitos medos e traumas, e ainda muitos deles não saberia com enfrentar. O caminho andado, o trabalho já feito me permite saber quais são esses medos e saber identificá-los no momento apropriado.

E se for necessário voltar a fazer análise. Os resultados sempre foram positivos.

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O Fervor da Festa do Bonfim na Bahia

Quem participa uma vez na vida da Festa do Nosso Senhor do Bonfim jamais esquecerá a experiência. Mesmo que digam que a festa não é mais a mesma, pelo foco turístico e político do evento. A celebração tem ainda, em sua essência, nas raízes, a razão pela qual foi criada. A devoção!

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A devoção é que atrai um grande número de pessoas e elas se propõem a caminhar oito quilômetros, sob um sol escaldante na cabeça, da Igreja da Conceição da Praia, no Comércio, à Colina Sagrada, no Bonfim.

Dia 11 de janeiro

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Este ano a procissão religiosa, que precede o rito de lavagem do adro e da escadaria da basílica, será no dia 11 de janeiro, quinta-feira.

Não só de carnaval vive Salvador

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Mais importante do que conhecer o carnaval em Salvador, na Bahia, é participar de suas festas religiosas populares que representam a raiz do povo brasileiro, com manifestações apoiadas na espiritualidade e no sincretismo.

Festas que dão uma conotação diferenciada a esta cidade que traz na arquitetura, na memória ancestral, traços e fatos da história do Brasil.

É surpreendente ao turista  se deparar casualmente com baianas vestidas de renda branca requintada e engomada,  vaidosas e sorridentes, cheias de adornos e colares, com seus potes de água na cabeça, flores e cheiro de Alfazema,  dançando ao som  do atabaque, para celebrar  sua devoção, enquanto descem as ladeiras do Pelourinho.

É uma imagem plena de significados que mesmo difícil de transmitir no instantâneo de uma foto ou nos segundos de um vídeo, não se pode deixar de captar  para  relembrar o  fascínio do momento.

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Salvador pulsa tradição religiosa

Salvador é uma cidade que pulsa e neste compasso, o do coração, e seu povo segue vivendo  cultura e tradição, “ainda” com muita música, expressão e sincretismo  na construção de suas crenças. Colocar este  ainda, entre aspas, pode surpreender o leitor por soar como  momento presente –  até agora – que poderá não existir no futuro.

Festas como a Lavagem do Bonfim,na segunda quinta-feira de janeiro, depois do dia de Reis, a homenagem a Iemanjá, no dia 2 de fevereiro, mais a missa da Benção, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,  no Pelourinho, ainda resistem no calendário, ano após ano, e só podem ser vistas e sentidas numa cidade como Salvador.

Olhar Crítico

 Dizem os soteropolitanos* que era mais organizada e mais fervorosa a Lavagem do Bonfim e que muitas outras festas se perderam no tempo e já estão no passado, como a de Santa Luzia, em 4 de dezembro, a da Conceição da Praia, a de Monte Serrat, “aonde o povo costumava estar presente para a virada do ano”.

O turista que participa da festa da Lavagem do Bonfim, com uma visão mais crítica, perspicaz, percebe que o evento popular se transformou “num mero acontecimento de exibição de políticos”, para destaque na mídia.  Na verdade, a multidão de fiéis pouco participa do momento culminante que é a cerimônia da lavagem. Aliás, que lavagem, senão uma simulação para publicidade.

O ritual que assisti em 2014 foi evidente a simulação feita por um grupo de baianas jogando um pouco de água no chão para TV filmar.

Mas o fervor penetrante é alheio ao circo

Vale contar o único incidente que presenciei, entre o povo fervoroso que se mantém agarrado às grades rezando e indiferente ao circo armado, é o de uma jovem que se recusou a sair da entrada principal quando um funcionário da prefeitura tentou afastá-la. Ele alegava que precisava abrir caminho para o prefeito de Salvador,  na época, Antonio Magalhães Neto.

Só desistiu de retirar a menina do local porque alguém lembrou a ele que aquela festa era “do povo e o prefeito iria participar apenas como convidado”.

 Decepção e também nostalgia de um tempo em que talvez fosse possível entrar na Igreja do Bonfim e rezar  para celebrar a caminhada de oito quilômetros da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até alto da colina do Bonfim e reforçar  os votos de amor e caridade pela humanidade.

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Hoje as portas permanecem fechadas por causa do vandalismo e roubo de imagens sacras.  Meu olhar reconhece que a única condição que permanece ainda intacta é a fé da população que, num sol escaldante, agarrada às grades, e no empurra, empurra da multidão busca nas orações, o conforto para aliviar suas dores.

Que a lavagem desse ano sirva para melhorar o Brasil nesse ano de eleição presidencial. Nem mais reciclar o Congresso porque o que existe lá já está tão podre que não  se aproveita nada. Que a fé do povo brasileiro trabalhador (quase escravo de novo) tenha força suficiente para mudar esse panorama e inspire gente boa e honesta a dirigir e construir um país de verdade!

*(denominação usada para o indivíduo que nasce ou vive no município de Salvador, na Bahia. Tem origem na helenização do nome do município para Soterópolis (cidade de Salvador), a partir da união de “σωτήρ” (transl. sōtēr, -os) e “πόλις” (transl. pólis), ambos do grego antigo).

 

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As banhistas de Pablo Picasso

Somente um genio como o mestre Pablo Picasso foi capaz de acentuar os opostos em harmonia poética: o volume exagerado nas formas e a leveza nos sentimentos.

As banhistas são graciosas e ao mesmo tempo monstruosas, suspensas nun estado lírico de prazer pelo desfrutar da paisagem marítima.Essas pinturas foram apresentadas pela primeira vez no Museu Guggenheim, em Veneza, sob a curadoria de Luca Massimo Berbero, que tive o privilégio de visitar em 2017. ‘Picasso sulla Spiaggia’ ( Picasso na praia) reúne uma seleção dos desenhos e pinturas realizados de fevereiro a dezembro de 1937 pelo artistas e são, na verdade, testemunhos do interesse pelo tema banhistas que o artista repete ao longo de sua vida.

Uma das obras ícones da coleção de Peggy Guggenheim (entre as mais famosas mecenas e colecionadora do século XX), foi apresentada nessa exposição 80 anos depois de sua realização em fevereiro de 1937. As duas banhistas que estão distraídas em brincar com um barquinho são volumosas e graciosas ao mesmo tempo. O corpo delas se destaca quase como uma escultura tridimensional, inserida num ambiente bidimensional – praia/mar e céu.

Estudo da tela As Banhistas feito em 12 de fevereiro de 1937, parece estar enquadrado em uma janela em perspectiva.

“A composição se oferece como calma e relaxada, suspensa no mais sutil lirismo, mas ao mesmo tempo transmite um velado senso de ameaça, com o personagem que aparece no horizonte. Um sentido de impotente voyerismo sugerido ao personagem que observa as banhistas, com olhar exageradamente sensual, o que vem em mente o mito clássico de Diana no banho e a história bíblica de Suzana e os velhos.”

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Essa pintura foi realizada em fevereiro de 1937. A banhista se transforma numa grande escultura branco-acinzentada, com a pernas em posição de ioga, cabeça inclinada sobre o livro, apoiada pelos cotovelos.

“É um corpo maciço, enquadrado em si mesmo, uma figura que, em sua poderosa posição frontal, gira as costas ao horizonte marinho curvo e parece completamente absorvida na leitura. Mais uma vez é um ser humano impenetrável, imerso em um ambiente de calma e silêncio, com um rosto enigmático e pouco conhecedor. Picasso, no entanto, parece abandonar, pelo menos em parte, a delicadeza formal dos banhistas anteriores em favor de uma representação mais angular e de um estilo deliberadamente escultural.”

1937 é um ano fundamental para as obras de Picasso e para os eventos históricos que antecederam a segunda guerra mundial (1939-1945). O nazismo cresce na Europa e apoia a política franquista na Espanha.

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Picasso é afetado pelo clima dramático e, em janeiro de 1937, fez as gravuras “O sonho e a mentira de Franco“, que apresentam os grandes temas de Guernica, uma metáfora pictórica da guerra e da dor associada a ela.


As gravuras feitas um mês antes da criação das banhistas, realizadas num ano de grande tensão na Europa, fazem um contraponto ao estado de espírito do artista: as dores da guerra e a serenidade das mulheres à praia, mas com um intruso observando-os quase que maldosamente.