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Um caso peludo

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Ilustração da netinha Victoria (Vicky) Wanke – 9 anos

 

Por Luiz Ernesto Wanke –  (Este ‘causo’ é antigo, de mais de 60 anos. Ouvi numa barbearia enquanto estava sentado na cadeira cortando o cabelo, por outro freguês que esperava a vez. O interessante é que esqueci quase tudo, mal me lembro do lugar, das fisionomias e muito menos dos nomes dos personagens. Mas não tive problemas de relatar a história, tão fresca como tivesse acontecido agora. É que a memória afetiva guarda apenas o que nos interessa e descarta os detalhes inúteis.)

Finalmente tinha reunido força e vontade para cimentar o piso da garagem que sempre o incomodou. Bastava uma chuvinha rala para as goteiras estabelecer o caos naquele chão barrento e liso, de maneira que ao recolher o velho fusca, ou ele ou o carro se complicavam. Era tão desagradável essa situação que seus amigos de trabalho mais chatos espalharam por todos os cantos que ele tinha encalhado seu possante na própria garagem.

Num sábado de folga tomou coragem e munido de material e ferramentas foi à luta. Tudo nos conformes até o final da tarde quando estava alisando a última camada de cimento. Não é que ao levantar os olhos deparou lá no fundão da garagem e em cima do parapeito da única janela lateral, um bichano angorá gordo ameaçando saltar sobre o piso fresco tão caprichosamente aplainado? Em princípio gritou escandalosamente para afugentar o gato. Torcia para que, assustado, tomasse o sentido inverso. Gritou, atirou algumas pedras de brita, mas qual, o gato sem nada entender, só fazia olha-lo com maior curiosidade.

E, finalmente, aconteceu: o improvisado pedreiro viu em câmara lenta o angorá pular em cima do piso, afundando suas patinhas na nata do cimento fresco, fazendo um estrago que doeu bem no fundo do seu peito. Ainda assim continuou a gritar, esbravejar, mas qual, o desgraçado nem dava bola.

Como se fizesse de propósito, o gato veio andando em ziguezague como a boiada à procura de água num regato. Mal acostumado e com os pés sujos de cimento, ainda veio de mansinho se aninhar junto de suas pernas, miando e levantando a cabeça à procura de um afago no seu cangote. Depois se enrolou na barra de sua calça, roçou seus pelos no calcanhar, e, por fim, miou um amoroso pedido de colo.

Mas agora o pedreiro só tinha o ódio para oferecer. Não pensou duas vezes, apanhou a colher de pedreiro e de quina deu com toda a força que podia um golpe definitivo na nuca do bichano. Ele, estrebuchando, só teve tempo de dar uma olhada enviesada no agressor e como sem entender, seus olhos perguntassem: por quê?

Só então o homem acordou da raiva. Arrependeu-se, mas era tarde. Não tinha mais volta porque lá estava o bichano inerte com as quatro patinhas viradas para cima. Mas antes que o remorso florescesse, teve uma ideia genial, digna de um crime perfeito: com a própria colher cavou uma pequena cova no último lance do piso inacabado, enterrou ali o gato, cobriu-o com terra socada e completou o seu túmulo com uma camada de concreto.

Ainda chocado passou a régua onde o gato tinha deixado suas crateras. Olhou o resultado desaprovando, mas que fazer já que estava exausto.  Juntou no carrinho de mão todo o material e já ia saindo quando a vizinha, uma solitária velhinha que morava no outro lado da cerca, encostou seu rosto enrugado num dos vãos e perguntou:

“- O vizinho não viu a Fifi por aí?”

“- Quem é a Fifi?”

“- Minha gatinha!”

Para não mentir, o pedreiro só balançou os ombros.

Sem uma resposta, ela abaixou seus olhos pensativos.

Depois continuou:

“- Sabe, moço, ela é danadinha! Mas não é má… Volta e meia foge para se encontrar com seus amantes pelos telhados da vizinhança… Eu a compreendo é moça e fogosa… Mas, vizinho, desde a morte do falecido me sinto tão sozinha que até eu preferia morrer, mas Deus é que sabe a hora. Então ela fica sendo minha única companheira e sinto tanta falta quando desaparece que não consigo dormir.”

gato (do livro inédito, Pobrete mas Alegrete)

 

 

 

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NOSSA CAPITAL MUNDIAL

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Por Luiz Ernesto Wanke – (Esta crônica faz parte do livro ‘Contos e Crônicas’ de 2005, edição comemorativa da Associação dos Professores do Paraná.)

Nós, ponta-grossenses, somos tidos pelos gringos alienígenas como um povo muito orgulhoso.  Ledo engano. Só porque dizíamos que as sombras dos nossos prédios estavam tirando o sol dos castrenses? Aliás, pândegos eles que afirmam ter sido Castro a capital do Estado, mas será que não sabem que Ponta Grossa é uma das quatro cidades que no passado foram capitais federais? (Salvador, Rio de Janeiro, Brasília e Ponta Grossa). Não sabem? Ora, Getúlio, na revolução de 30, praticamente tomou posse da presidência em Ponta Grossa!

Brincadeirinha, mas que é, é!

Esta tendência de forçar uma suposta importância surgiu no tempo que éramos a segunda cidade do Paraná e batalhávamos para superar a capital. Mas isto foi há tanto tempo!

Nossa principal festa não é o carnaval pífio nem a festa da cerveja, hoje aguada pelo comércio desenfreado. É quando se veste o uniforme engomado, passa-se alvaiade no tênis e as professorinhas capricham nos ensaios de marcha da garotada. É isto mesmo, na festa de aniversário da cidade, o 15 de setembro. Com muito orgulho desfilamos na Avenida, nem dando bola para o 7 de setembro. Lembro-me que uma vez o General comandante do então 13 RI reclamou! Não seja por isso, nos intitulamos a ‘capital cívica do Paraná’, mesmo que seja caolha!

Pensando bem, hoje em dia civismo exacerbado é doença. Num mundo globalizado, a melhoria da qualidade de vida das pessoas e o cuidado com o meio ambiente são prioridades.

E a tal ‘capital da soja’? Pelo título pomposo levamos um ‘pito’ dos moradores de Palotina que realmente são os grandes produtores da leguminosa. São merecedores da honra, mas, pelo amor de Deus, o ‘mundial’ já é nosso e ninguém tasca!

Já o ‘capital do chope escuro’ até cai bem. O problema é que a cervejaria que o produzia na Avenida foi ‘simbora’.

Onde ficava ‘o maior entroncamento do sul do Brasil’? Onde, onde? Em Ponta Grossa! Ficava porque os trens sumiram! Para compensar, o então ministro Andreazza, fazendo média mudou para “maior entroncamento rodoferroviário do sul do Brasil”! Pintamos isto numa placa e a colocamos vistosamente na Rodovia do Café…

Depois puseram outra: ‘a capital dos caminhões’! Ora, ter que aturar muitos caminhões não gera sentimento de orgulho para ninguém. Ao contrário, eles produzem muita poluição, sendo tão indesejáveis que ninguém os quer dentro da cidade!

Quem sabe não ficaria mais verdadeiro chamar nossa cidade de ‘capital mundial dos ponta-grossenses’?

Também não seria a hora de abandonarmos esta mania de ser a capital de tudo e, ao mesmo tempo, de nada?

E, finalmente, não seria má ideia colocar lá mesmo na Rodovia do Café – de preferência no Contorno com a cidade visível – uma placa escandalosamente iluminada, com letras enormes, piscando intermitente e tendo como moldura uma flecha apontando a cidade, com dizeres:

“AQUI SOMOS FELIZES!”

Melhor ainda?

Só se fosse verdade!

 

COMPLEXO DE NABUCO: Este hábito de enaltecer ou a si ou sua comunidade de algumas qualidades suspeitas e depois divulga-las, chama-se de ‘complexo de Nabuco’. Um exemplo é achar que um hino nacional cantado entusiasticamente ganhava jogos. O pior é que todo mundo acreditou, mas só foi verdadeiro até os 7 a 1. Outro exemplo é que ‘temos as mulheres mais bonitas do mundo’ ou ainda, que ‘nosso povo é o mais alegre do Universo!’ E por aí vai…

Mas por que deram esse nome, pondo o coitado do Nabuco nesta historia?

Dizem que ’pegou’ por que ele mesmo se achava ‘formoso’! Mas, como vimos nesta crônica, pode ter sido mais uma lenda.

Brincadeirinha, mas que é, é!

 

 

 

 

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O Sabugo

 

Penso que fui professor (hoje aposentado) por vocação. Nesta profissão, além de transmitir os conteúdos procurei sempre ter a melhor relação com meus alunos, geralmente os adolescentes de nível médio. Mas quando hoje me contam causos daqueles tempos fico arrepiado, já que – me parece – essa relação mudou e os professores de hoje em dia precisam tratar seus alunos com a máxima diplomacia. Se derem uma ‘escorregadela’ são alvos de reclamações e às vezes, até agressões. Mas como nem tudo é perfeito, este ‘causo’ é de uma ocasião que me dei mal.

Era professor de ensino médio acostumado a lidar com adolescentes. Por isso, fiquei desapontado quando a diretora do novo colégio que eu tinha sido nomeado entregou-me uma turma de crianças de quinta série, todas acostumadas a rodearem a professorinha e a chamarem de tia. Mas como eu era novo na escola, tive que me vestir de humildade e aceitar sem pestanejar a função.

Decorridos mais ou menos dois meses de aulas, a zelosa diretora convocou uma reunião de pais e professores para estabelecer as normas da escola e algumas mudanças para o restante do ano letivo.

Era um sábado. Chateado com a obrigação cheguei atrasado e coloquei-me lá no fundão do auditório, de pé porque naquela altura todas as cadeiras estavam ocupadas. Lá na frente a chefia discorria sobre itens comuns como a necessária disciplina dos alunos, pedindo o devido apoio para os pais. Eis que no meio da monotonia, levanta-se um senhor pedindo para falar. Enquanto a diretora esperava curiosa, ele desabafa:

“ – Senhora diretora, que absurdo! Tenho que fazer um denúncia grave: um professor chamou meu filho de ‘sabugo’!

Quase cai sentado. A palavra ‘sabugo’ varou a sala como uma flecha me atingindo no coração. Esta era minha expressão favorita quando brincava com meus alunos adolescentes, com os colegas professores e até usava-a comigo mesmo. Mais ou menos assim: quando os alunos me pediam algo fora do meu alcance, dizia, ‘Não posso fazer porque sou sabugo’ (subordinado).

Com a reclamação do pai, toda a sala me pareceu escura. E eu devo ter ficado vermelho ou a cor que valha. Que vergonha! Constrangido, olhei com o rabo dos olhos e lá estavam os colegas com os rostos virados no meu sentido. Todos continham seus risinhos cínicos!

A diretora tomou as dores do pai. Indignada gritou aos quatro ventos:

“– Sempre oriento meus professores para respeitarem nossas crianças!”

Com os olhos fixos nos tacos do chão vi um vão entre duas peças mal colocadas. Desejei me enfiar naquele espaço mínimo.

O tempo parou. A diretora aproveitou para engatar um sermão geral:

“ – Por estarem em formação é que temos que ter todo o cuidado com que falamos. Devemos tratar nossos alunos de maneira digna!”

E ainda arriscou uma ‘pérola’:

“ – Não somos nós, adultos, os espelhos das crianças?”

Assim por diante. A diretora deixou a marcha na banguela e falava, falava… Seu discurso não tinha fim.

Finalmente fui me recompondo. Por instinto de autopreservação procurei dentro do mim alguma coisa que pudesse – pelo menos – minimizar minha falha. Afinal, se os pirralhões podiam me chamar indevidamente de ‘tio’ porque eu não teria direito de nomeá-los com uma expressão jocosa?

Remoendo-me por dentro procurei na memória a origem do fato e lembrei-me que sim, tinha pedido delicadamente a um aluno ‘Sabugo, por favor, me mostre seu exercício!”

Levantei os olhos e a diretora continuava sua ladainha. Quem sabe não seria uma boa ir lá na frente pedir desculpas ao pai ofendido? Não, meus pés ficaram colados no chão!

Fui um covardão e fiquei calado até o final do blá blá blá da diretora. Quando finalmente ela terminou seu longo ‘sabão’, respirei aliviado. Mais ainda quando o assunto virou para a necessidade da escola exigir os uniformes obrigatórios… Suspirei, seria a luz voltando naquele salão?

Não, porque o tal pai estava indignado e continuava a reclamar aos brados com seus vizinhos de cadeira!

Até que na terceira fila, uma mulher se levantou e pediu a palavra:

“- Senhora diretora, assim não pode! A senhora fica se esgoelando aí na frente, mas o ‘pai do sabugo’ não presta a atenção nas suas ordens, fica falando a toa e ainda atrapalha o nosso entendimento!”

(do livro inédito, ‘Pobrete mas alegrete’)

Pós ‘causo’:

Através do Facebook hoje em dia tenho contato com meus ex-alunos e deles tenho recebido um retorno positivo deste estranho convívio escolar. Cada um tem uma história para contar daqueles tempos, como o dia que cumprimentei todos pelo dia das mães, ou que ‘eu dava aulas no corredor da escola’ ou ainda – neste caso negativamente – quando chamei um pirralho de ‘peixe’, no sentido de protegido. Ele explicou-me que por isto foi alvo de brincadeiras dos colegas e sofreu. Mas, mesmo assim, não sei se me arrependo e muito menos, se hoje faria diferente.

Um dos últimos que conversei contou-me que numa determinada aula ele pediu licença, levantou-se e disse que não tinha entendido o assunto. Então eu o respondi mais ou menos assim:

– Não diga deste jeito. Você tem que fazer uma cara de ignorante, babar, largar o lápis na carteira e pedir distorcendo a voz: ‘me pega na mão que eu não chei fazer!’

Graças a Deus ele também disse que depois de toda a classe rir conosco eu fui lá e o ajudei.

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Fala Nabuco!    

 

Por Luiz Ernesto Wanke-As opiniões e textos de Joaquim Nabuco que vão ler são inéditos. Quer dizer que apesar desse nosso herói da palavra – um dos principais abolicionistas – ser estudado e revirado do avesso, estou certo que seus escritos aqui apresentados são uma demonstração de suas posições consolidadas posteriormente. Faz parte da coleção de documentos de meu filho Marcos Luiz que nos seus tempos de rapaz, jovem e interessado, não se cansava de pesquisar a História pelos sebos da vida. Por este ímpeto até foi admitido no Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

1São porções tiradas de duas cartas dirigidas ao conselheiro Homem de Mello, um dos colaboradores do Império mais chegados a D. Pedro II. Essas cartas tem um significado enorme e até poderiam ser consideradas uma extensão do livro ‘Minha Formação’ de Nabuco, porque retrata um jovem ainda sem definição profissional, embora já formado e trabalhando provisoriamente no escritório do pai, José Nabuco como advogado. Apesar disto, ainda não tinha começado sua vida pública.

O objetivo de Nabuco era, através desse amigo e ex-professor – ali tomado como ‘pistolão’ – conseguir um cargo remunerado de observador da educação no exterior e, com esses conhecimentos, colaborar na implementação de uma educação de qualidade no Império. Porque em 1873 pretendia (como fez) viajar para a Europa.

“Tenciono partir em maio próximo (foi em agosto) para a Europa e estimaria poder lá ser útil a essa grande causa do derramamento e da elevação da instrução entre nós. Se o senhor quisesse encarregar-me-ia de ordem do ministro ou sua com autorização para isso, de estudar a instrução na Europa, e especialmente na França e Alemanha, podendo eu passar pelos Estados Unidos. Há muito que ver na Europa e que introduzir aqui e esse trabalho só pode ser feito por alguém que conheça as necessidades e aptidões de nosso país, com a necessidade e exequibilidade das reformas…”

Para expor sua tese ele fez uma ligeira análise da educação de sua época e ainda reforça dizendo da sua competência para executar tal missão:

“É de se notar que em nosso país não se sabe o que lamentar mais, se a ignorância das massas, se a instrução ligeira e superficial das classes superiores. Sem classe superior instruídas, na extensão das palavras, nada se pode conseguir e ainda que todo o povo saiba que os primeiros lugares pertencerão à mediocridade e a meia ciência. Estou convencido que há muito que reformar na atual organização do ensino superior e que a iniciativa de um homem basta para isto, como também estou convencido de que a má organização do ensino superior e do secundário se deve atribuir à esterilidade de nosso talento e o período de ingenuidade literária e científica que atravessamos, quase no último quartel do século dezenove!”…

Mas convenhamos, tal como queria, o cargo (ou missão) não existia nos meandros da burocracia imperial. Mas ele mesmo esclarece onde poderia acha-lo lançando uma semente para seu futuro de diplomata:

“Os nossos funcionários diplomáticos têm essa incumbência, mas como a cumprem pode se ver nos relatórios publicados, que são compilações de algarismos e artigos nos jornais, sem vistas próprias nem originalidade. Oferecendo-me para estudar a instrução pública e num caráter oficial, quero, sobretudo aproveitar-me das vantagens que tal comissão dar-me-ia, sendo então tudo franqueado e podendo pedir em toda a parte auxílio de nossas legações.”

Essa suposta missão de Joaquim Nabuco tinha até um tempo de duração previsto por ele de três anos. Começaria em 1873 na Exposição de Viena e se encerraria em 1876 com a Exposição de Filadélfia, nos Estados Unidos e em comemoração ao primeiro centenário da independência.

SUAS CRÍTICAS

Nessas duas cartas ele é cáustico quanto à educação praticada no Império. Por exemplo, critica até os livros didáticos: “O compêndio, além do merecimento de ser verdadeiro e não conter faltas de nenhum gênero, deve ser facilitador do ensino. O método, portanto deve ser tão importante como o da exatidão e a falta desta leva o discípulo a errar e perder tempo.”

Apesar de católico, critica a posição da escola atrelada à igreja, mas também admite a possibilidade da democratização e universalização da educação. Faz uma comparação: “Mais cedo ou mais tarde a instrução francesa tornar-se-á obrigatória, como será leiga. É essa transformação que julgo ser muito digna de observação, porquanto nós que temos que passar pela mesma crise, teremos mais interesse em saber como os outros povos a atravessarão”. Mas este último parágrafo termina com uma preocupação que se fixou mais tarde e foi a razão da sua luta para a libertação dos escravos: “… da mesma forma que para nós é mais interessante saber como se produziu nos outros países a transformação do trabalho escravo em trabalho livre, do que como eles vivem com a liberdade.”

Nabuco se revolta contra a ignorância instalada no Império. No seu estilo que mais tarde levaria à perfeição, protesta:

“É na verdade uma grande causa, a da instrução pública. É preciso fazer-se alguma coisa mais do que decretar o ensino obrigatório. Entre nós ele ficaria na letra da lei como em Portugal. É preciso formar as classes altas, essas das quais saem os ministros, os deputados, os senadores, os juízes, os médicos, os homens de letras, os advogados e os professores. Na verdade os estudos superficiais que se fazem entre nós, exceto por dois ou três por jurisprudência, tem sido fatais ao país. É preciso, porém, que fujamos dos estudos incompletos e precipitados. É tempo que façamos pela humanidade alguma coisa útil. Colhemos os benefícios da inteligência, da ciência e da dedicação de outros, mas sem nada lhes dar. Por que não fizemos ainda dar um passo a nenhuma ciência, a nenhuma indústria e a nenhuma arte? O que já descobrimos? (exceto o aeróstato, se é exato que a glória é nossa). O que já produzimos de duradouro, a não ser as nossas leis orgânicas? Nada! E no entanto não nos falta inteligência nem campo de estudo. Mas da mesma forma que nossa natureza é descrita pelos estrangeiros, são eles que escrevem a nossa Historia. É triste a feição moral de um país cujo aspecto físico é sem rival no mundo…”

OS OPRIMIDOS

Nabuco pregava que as escolas deveriam ser mistas, num tempo que no geral a educação para mulheres restringia-se ao estudo do francês – para um bom casamento – e prendas domésticas – para serem boas esposas. Diz ele: “Para as escolas mistas das quais se diz mais vantagens que inconvenientes, enquanto na França são julgadas perigosas para os costumes e insuficientes para a educação (ver o livro l’École de Jules Simon)”.  Para ele esse preconceito estava ligado à índole latina e a religião.

Outra observação referindo-se especificamente aos Estados Unidos: “Para um assunto que nos interessa as escolas de homens de cor, escolas que tanto desenvolvimento teve depois da guerra que representam tão interessante papel na transição da escravidão para a liberdade.”

QUEM TEM PADRINHO NÃO MORRE PAGÃO

Não, Joaquim Nabuco não conseguiu o cargo que imaginou. Teve que vender o Engenho da Serraria – que tinha herdado da madrinha Rosa – para com esse dinheiro percorrer a Europa por um ano.

É razoável se pensar que Joaquim Nabuco não conseguiu seu cargo de ‘comissário’ da educação imperial por razões burocráticas. E que também tenha se decepcionado com o fracasso de seu pedido porque nada fez sobre o planejamento contido nessas duas cartas na sua viajem de 1873 e nada de específico que pensou registrou nos seus escritos posteriores.

Mas o ‘espírito’ das cartas ficou. Tanto que dois anos depois de regressar desta viagem, em 1876, ele foi nomeado ‘adido de primeira classe’ junto a legação brasileira nos Estados Unidos. Justamente seu objetivo final contido no teor das cartas. Por isto, hoje elas representam não só um documento, mas uma ‘joia’ tal como fosse feita de ouro e diamantes.

Para atingir sua meta teve ajuda paterna. Afirmo isto porque na última dessas cartas Nabuco se despede do Barão Homem de Mello citando toda admiração pelo pai, que depois foi sua inspiração para a obra prima ‘Um Estadista do Império”.

“Tomei o dia de hoje para responder-lhe e envio-lhe esta por meu pai, com quem lhe peço que se entenda sobre tudo que me disser respeito: como ele pensar pensarei eu.”  

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