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Os geoglifos na arte dos Incas

Por Luiz Ernesto Wanke – A primeira evidência de que nossos índios americanos são descendentes dos chineses, com perdão da brincadeira, ‘saltam aos olhos’. Sim, os olhos puxadinhos comuns nos chineses e em todos os índios da América. No meu livro ‘Brasil Chinês’ de 2009,  conto e provo que eles chegaram na América por volta do século V de nossa era, se imiscuindo nos povos aborígines modificando suas crenças e suas culturas. A genética também diz que esses nossos índios americanos tem genes compatíveis aos chineses. São bons ‘rastros’ sim, mas além do aspecto físico e genético foi a religião o principal motivo para que esses povos pré-colombianos (paleoíndios) deixassem vestígios comprobatórios desta intervenção.

Os costumes são passíveis de variações, mas na religião existe uma ‘cola’ que se fixa nas crenças transmitindo de geração para geração conceitos fixos e pouco mutáveis. Foi assim que descobri este aspecto da formação do homem americano, causalmente, ‘traduzindo para o português atual’ um diário de um viajante francês chamado Genettes, que ao visitar no século dezenove uma aldeia coropó, virgem da presença europeia, registrou no seu diário que ouviu de uma menina a palavra ‘Tao’ para significar Deus. Tao é a referência chinesa dos ensinamentos de Lao Tse e que na metade do século III d.C. foi transformada em religião com a introdução das sagradas escrituras indianas. Então esses índios eram taoistas? Ele mesmo –  Genettes – não chegou a concluir isto, mas se admirou e admitiu existir uma ligação misteriosa entre os coropós e os povos orientais.

É importante observar a arte dos índios pré-colombianos sob a visão religiosa, já que é derivado da crença chinesa. Existem vestígios nas civilizações indígenas mais cultas (maias, incas e amazônicas) que os aspectos simplistas e rudes desses índios foram modificados a partir do século V para padrões muito mais refinados e artísticos de origem chinesa. São sinais gráficos produzidos pelos indígenas, mas com conceitos chineses. Como os taoties que são cabeças disformes com finalidade de espantar os maus espíritos, sem a mandíbula e geralmente zoomorfas. Elas estão presentes tanto na cultura chinesa como na dos índios americanos.

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(Orelha do ‘Brasil Chinês’)

 

No meio livro nomeio muitas dessas evidências, inclusive a situação da China no século V e o motivo da imigração chinesa para a América.

GEOGLIFOS

Uma arte desenvolvida pelos índios americanos são aqueles imensos desenhos feitos no solo e que a maioria só pode ser vista do alto, com veículos voadores modernos e outros, somente por fotografias a partir do espaço. São os geoglifos e encontram-se espalhados por toda a América, mas é nos desertos eles se conservaram. Normalmente são considerados misteriosos e desconhecidos e sobre eles se desenvolvem teorias, inclusive a da intervenção de seres extraterrestres, mas olhando-os sob o prisma da cultura religiosa chinesa descobrimos que não é nada disto e são explicáveis.

Na realidade os índios desenharam aquelas imensas figuras no chão para que ficassem invisíveis. Somente eles – os autores –  e os deuses poderiam admirá-los! E através dos geoglifos esses índios pediam aos deuses tudo o que estivesse precisando. Água, principalmente, no caso dos nazcas. Para isto desenhavam coisas relacionadas com a água como peixes, baleias e plantas aquáticas. Também foram encontradas em lugares cerimoniais, conchas, pedras roladas de rio e restos cerâmicos de recipientes para água principalmente junto às pedras demarcatórias das linhas dos geoglifos.

Mas os incas também gostavam muito de fazer geoglifos com a forma de espirais. Por quê?

É que eles construíram um sistema de canais subterrâneos que trazia a água das montanhas para o deserto. E o acesso era através de um declive em forma de espiral! Por isto a espiral passou a ser um login que significava ‘água’! (Aí eles desenhavam espirais adoidadas em tudo, inclusive, na cauda de um macaco).

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Os chineses – tal como os nazcas – acreditavam na montanha e na água como divindades, juntamente com os espíritos dos antepassados (crença de origem taoista). Faziam oferendas e sacrifícios de animais e humanos. Foram encontradas restos dessas ofertas cerimoniais no alto das montanhas andinas. Ainda hoje, no Peru, perdura a tradição de levar oferendas para cima do monte Cerro Blanco. (Os chineses até hoje têm o costume de homenagear seus antepassados em cima das montanhas). Não é coincidência de que o ideograma chinês na forma de um tridente ‘shan’ (montanha) foi escrito pelos indígenas em geoglifos em cima de uma montanha e que o ideograma ‘sang’ (árvore) seja um geoglifo desenhado em Paracas no hoje Peru e voltado para o Oceano Pacífico.

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No Brasil os geoglifos foram desenhados sobre o solo vegetal e têm maior desgaste. No Acre, predomina os desenhos ou de círculos ou de quadrados. O que quer dizer? Ora, para os chineses o círculo significa o céu e o quadrado, a terra. Portanto nossos geoglifos estão em perfeita sintonia com o pensamento oriental.

Também foram encontrados geoglifos no sul do Brasil, na região Mafra-Rio Negro, entre os Estados de Santa Catarina e Paraná. São desenhos incas de machados e aves do cotidiano inca. Sabe-se que existiu uma ligação entre o oeste andino e o leste brasileiro através do famoso Caminho de Piabiru. Este contato inca deixou marcas em pedras, principalmente de círculos concêntricos no litoral de Santa Catarina.

Mas o mais espetacular geoglifo desenhado por indígenas que viveram ao longo do Rio Colorado está abaixo e só agora foi revelado com os recursos modernos de fotografia espacial da Nasa. Foi feito no deserto de Blythe, California e tem a forma de um tridente (montanha). Além disso, está escrito em cima de uma montanha! E nem é somente um simples geoglifo de índios pré-colombianos escrito em ideograma chinês. É mais porque está escrito no estilo kaishu, o jeito especial de escrever tal ideograma, quando os chineses chegaram na América no século V. É a datação e prova de que os chineses chegaram na América naquele século!

E se imiscuíram com os nativos. Daí seus olhos puxadinhos como começamos comentar neste artigo.

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A prova definitiva da datação: os antigos chineses escreviam o ideograma shan desta maneira no século V d.C., isto é, como um tridente simples. Portanto, os índios pré-colombianos sabiam escrever em chinês!

Ora, esta é datação da chegada dos chineses na América.

 

Serviço: ‘Brasil Chinês’ – 330 pg. – Editora Lewi – 2009

(Ainda disponível no site das Livrarias Cultura e Livrarias Curitiba)

 

 

 

 

 

 

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Sufoco infernal

1Por Luiz Ernesto Wanke – Vinha preocupado quando entrei na Avenida Vicente Machado com minha velha Brasília. É que o dinheiro do mês tinha acabado e eu não conseguira renovar o licenciamento do carro – também chamado de ‘emplacamento’ – já com três meses vencidos. Automaticamente parei no semáforo respeitando o sinal vermelho. Afundei-me na poltrona cheio de dúvidas existenciais principalmente pela minha péssima escolha de ser professor.

Liberado deste primeiro sinaleiro vi lá longe outro com a luzinha verde me chamando. Rezei para transpô-lo a tempo porque uma aula no colégio me esperava. Pisei firme no acelerador, o coitado do carro tossiu, mas seguiu célere para a esquina próxima. Tudo bem parecia normal, mas em cima da hora o sinaleiro me advertiu com o amarelo. Com o rabo dos olhos pude ver que pouco antes de passar por debaixo de seu olho crítico sua cor mudar repentinamente para o vermelho. Putzgrila era tarde para corrigir a manobra!

Desgraça pouca é bobagem: desesperado, vi um miserável de um guardinha sair do meio dos carros estacionados, levantando o braço e pedindo que eu parasse. Claro, entrei em pânico e minha cabeça deu a impressão de estar girando sem sentido, perdi a noção dos ruídos do trânsito com um silêncio interior e uma péssima expectativa. Era um isolamento estranho no meio dos carros e das pessoas que circulavam nas calçadas. Bati no bolso da camisa e não senti os documentos… Ainda por cima estava sem a carteira de habilitação!

Não tinha mais nada que pudesse piorar a situação.

Tinha!

Não dava para parar porque os carros atrás do meu já ensaiavam um buzinasso por causa da minha lentidão. Não havia lugar livre nas laterais da rua onde eu pudesse estacionar. Fazer o que? Pensei: tenha paciência seu guarda, só me resta seguir adiante!

Pelo espelhinho retrovisor pude ver que o guardinha não tinha desistido de mim. Protestava levantando os braços tal como um desses espantalhos de vento. Fui avançando até encontrar, quatro quarteirões adiante, uma vaga de entrada de garagem com uma pequena folga para estacionar. Mesmo assim, meio enviesado.

Parei ali e fiquei inerte e surdo. Rezei baixinho esperando um milagre. Quem sabe se, pelas dificuldades circunstanciais e pela distância, o guardinha desistisse de mim? Mais ainda, o calor de um sol a pino de verão ajudava a levar aquela cena ao limite do suportável. Mas o espelhinho teimava em mostrar que o espavorido guardinha vinha ao meu encontro numa correria louca, balançado sua túnica desabotoada de um lado para outro. Desejei que caísse ou coisa parecida e mentalmente empurrei-o sem dó, mas claro, sem sucesso.

Finalmente ele chegou e se aproximou de minha janela. Mas o trânsito estava pesado daquele lado e fez que o infeliz precisasse contornar a frente de meu carro. Nesse instante pude ver a silhueta de meu algoz toda manchada de suor e seu rosto fechado num zum imaginário. No meu delírio juro que vi seu corpo projetar no chão da rua uma sobra de demônio, incluindo um rabo pontudo e os dois chifres.

Quando chegou à janela do carona pude ver seu rosto pingando de suor. Bateu no vidro que estava fechado e eu, do lado oposto, estiquei o braço direito, agarrei a maçaneta e girei lentamente a manivela. Meu desejo era que aquele ato durasse toda eternidade.

Quando finalmente o vão ficou livre, o guardinha enfiou a cabeça para dentro do carro e balbuciou ofegante:

“– Quanto tirei ontem?”

Seja por uma confusão mental, seja pela surdez momentânea provocada pelo medo, a ‘ficha demorou a cair’ Pensei, ‘quanto tirou?’… ‘quanto tirou?’… Aí sim eu entendi: o rapaz estava me perguntando sobre uma nota de prova? É, lembrei-me que na noite anterior tinha feito uma avaliação com alunos do ensino médio.

Sim, agora podia respirar: era um aluno! Recostei-me lívido na poltrona do carro, fiz cara de professor sério e aborrecido com a situação, mas enfim consegui liberar minha voz que ainda estava presa pela angústia:

“- Quanto tirou?”

O guardinha se contorceu de curiosidade. Para afastar qualquer outra possibilidade de reação, menti:

“- Você foi ótimo, rapaz! Tirou dez!”

Deus há de me perdoar!

Enquanto o jovem sorria de felicidades eu gargalhava por dentro.

Como uma vingança silenciosa e sem mais conversa, saí engatando uma primeira com tal violência que obriguei o guardinha a recolher a cabeça rapidamente.

 

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Que mal lhe pergunte

Quando olhei a fila quilométrica esperando o meu ônibus é que dei conta do grande desastre de ter chegado o mês de março e com isto, recomeçado as aulas. Principalmente porque o ônibus que queria era compartilhado pelos jovens alunos, a caminho de suas escolas, todos identificados pelos seus uniformes.

Desanimado, assumi o último posto da imensa fila.

Depois de uma espera irritante chegou o primeiro ônibus, sucedeu-lhe outro e outro, mas a fila progredia numa morosidade angustiante. Eis que ocorre um milagre tão inesperado como só um milagre consegue ser: um único e misterioso ônibus passa diante dos meus olhos com a plaquinha de identificação de rota dizendo que seu destino me serviria. E melhor, parou lá adiante da fila sem ninguém entrar!

Corri desesperado, mas quando me aproximei a porta estava sendo fechada.

“- Tem que ser mais esperto, ô meu!” Gritou o motorista reabrindo a porta.

Puxa, sorri por dentro, o veículo estava vazio e eu me esparramei numa cadeira individual como um ‘pachá’. Por uns minutos fiquei extasiado, desfrutando a gostosura do momento e a grande sorte do dia.

“- Você vai para o terminal do Portão?”

Despertei do estado alfa, dando conta que o motorista estava perguntando para mim. Burro, ainda olhei para os lados para me certificar que era o único passageiro.

“- Vou sim!”

“- Mas vamos ter que fazer uma parada técnica!”

Que seria isto? Olhei para o cobrador que confirmou com a cabeça. Logo o motorista freou o veículo naquele sibilar forte, levantou-se e deu uma gostosa espreguiçada.

“- Me compre uma Tribuna!” ordenou ao cobrador.

“- Com que grana?”

O homem enfiou a mão no bolso e escolheu algumas moedas.

O cobrador foi e voltou, saltando da calçada para o ônibus num salto olímpico. ‘Podemos partir’, pensei.

“- Sobrou troco, não? Volte lá e me traga um ‘Papa Tudo”

Lá foi o cobrador de volta à banquinha.

“- Acabou.”

Só então o motorista me viu observando-o. Desconfiou:

“- Que mal lhe pergunte o que faz?”

“- Sou aposentado!”

“- Benza Deus… Cismei que o amigo era da prefeitura.”

Entendi que ele pensou que era um fiscal.

Terminada a leitura do jornal, o balanço das moedinhas do cobrador, finalmente o carro começou a se movimentar. Mas nem tanto. Logo no próximo sinaleiro parou. Abriu a porta e chamou alguém. Olhei curioso e vi uma mocinha, fantasiada de shortinho curto e blusinha sexy toda colorida, com grandes letras de uma imobiliária.

A moça colocou seu rostinho pelo vão da porta:

“- Balas!” disse o motorista.

Ela correu até a calçada e trouxe um punhado de balas. Ao repassar para o motorista algumas caíram.

“- Me dá um desses prospectos para enleá-las!” ordenou o motorista.

Então reparei na longa fila de espera atrás do ônibus. E começou um buzinasso. Acostumado, o motorista nem deu bola. Segurou o ônibus até que a mocinha atravessasse a rua.  Aí foi o cobrador que reclamou:

“- Não vai sobrar nenhuma?”

“- Negativo! Se estava a fim, pedisse!”

Finalmente, seguiríamos incólumes ao destino? Não com eles. Logo paramos.

“- Uma calota!” gritou o motorista.

Uma o que?

O motorista apontou para um lugar distante.

“- Vá lá pegá-la!”

O trânsito estava brabo e ficamos ali parados até acalmar. Quando o sinaleiro deu um refresco, o motorista engatou uma marcha ré de uns trinta metros. Enfiou a cabeça para fora da janela orientando o cobrador:

“- Mais à direita… Ali, no cantinho!”

Olhei o jovem driblando os carros. Finalmente eis ele todo faceiro de calota na mão:

“- Já tenho duas dessas… Com essa, só me falta uma!” bradou o motorista com um sorriso nos olhos.

Imaginei que estava construindo um carro com as peças encontradas na rua. Aliás, achei a calota tão feia, de plástico preto, toda esfolada, tão diferente das cromadas e brilhantes que na minha infância corri atrás ao vê-las se desprender das rodas dos carros de minha saudade.

Enfim, novamente estávamos em movimento. Bem perto do terminal do Portão, ao cruzar a Rua República Argentina, um fusca atravessou-se na nossa frente. A brusca freada lançou-me contra a cadeira da frente e no choque, espremi meu dedinho mindinho da mão direita contra um suporte metálico.

“- Desgraçado!” gritou meu motorista.

“- Filho da puta!” respondeu nosso inimigo. E ainda acrescentou aos brados que estava na preferencial.

Enlouquecido, o motorista veio me cobrar, como se a culpa fosse minha:

“- Preferencial? Cadê a placa? E o transporte coletivo não conta?”

O homem não falava, gritava descontrolado apontando para mim:

“- Um lazarento desses vai prejudica-lo!”

Eu? Não entendi meu papel naquele espetáculo lúdico. Mas, calma, ele tinha seus argumentos:

“- Esta é uma linha experimental. Você é testemunha que ela é rápida porque desvia do centro, não concorda? Se bato o ônibus, vai contar na avaliação dos ‘home’ e eles podem suspender a linha prejudicando justamente o senhor que é usuário e depende dela… Não concorda?”

No limite de minha paciência desliguei sua fala da minha cabeça. Mas ele insistia:

“- Não concorda?”

Não, não concordava com nada. Raivoso com a dor no mindinho, eu armei mentalmente uma resposta que na hora não tive coragem de falar, mas na hora da saída iria esbravejar: ‘ se esta é uma linha experimental, sugiro que a prefeitura coloque-a como uma viagem de aventuras, e, claro, com a mesma tripulação’.

Bom, finalmente o ônibus encostou-se à praça do terminal. Na saída da catraca, parei e olhei fixamente para o motorista, pronto para declamar meu protesto. Mas ele notou meu interesse e se adiantou:

“- Está entregue! Vá com Deus!”

Está certo, me acovardei. Calado e com dor no mindinho, acabei engolindo minha revolta.

Acaso sou louco?

 

 

(Do livro inédito, ‘Pobrete, mas alegrete’)

 

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Lágrimas para um rato

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Por Luiz Ernesto Wanke – A noite estava terrível de fria e o preso não conseguia dormir porque seus pensamentos estavam bem longe. Arcides – seu nome – se revirava na cama com saudades da liberdade. De madrugada, com o cansaço finalmente chegando, conseguiu se aquietar e estava fechando os olhos quando sentiu arranharem seu calcanhar. Pulou da cama e deu de cara com um ratão encarando-o.

“ – Seu filho de uma puta!” gritou procurando o sapato para tentar acertar uma pancada na cabeça do bicho.

O rato nem se assustou com o escândalo do Arcides. Só fez andar mais um pouco e se acomodar na esquina do ‘boi’ (banheiro). Lambeu uns respingos e ficou cheirando o chão molhado.

“ – Vou lhe matar, seu cão danado!” gritou Arcides.

O rato só levantou a cabeça. Parecia que não tinha medo.

“ – Desgraçado, corra, vaza!”

Nada.

O rato estava impassível para sua surpresa. Internamente divagou se aquilo estava acontecendo.

“ – Está com fome?”

Estendeu o braço por cima do companheiro que dormia e pegou sua calça pendurada do outro lado. Afundou a mão no bolso e tirou um pão meio duro. Arrancou um naco e jogou-o para o rato.

“ – Coma e se mande! Quero dormir!”

Enquanto o rato ruía o pão, Nhô Arcides, pensativo, ficou observando-o. Não é que aquele bicho podia ser seu parceiro? Ora, a cadeia era lugar de gente, mas também de ratos! Só que em comunidades separadas: enquanto uns se recolhiam, outros dominavam o pátio. A diferença é que na vez dos ratos não tinha guardas que os controlassem. Pensando bem, tinha outra: enquanto queria muito ir embora, os ratos adoravam o lugar! Lá em baixo, corriam para todos os lados, fuçavam os restos de comida abandonadas pelos presos e até invadiam a cozinha pulando de panela em panela numa festa barulhenta. Ora, cadeia é o lugar onde não falta o que comer e ali nenhum rato passa fome!

Nhô Arcides deitou-se na cama e ficou lá pensativo. Lembrou-se quando fazia ‘pescaria’ de ratos. Era assim: amarrava na ponta de uma cordinha um resto de carne ou pão, algo que um rato pudesse engolir de vez. Pela janela do cubículo soltava a linha e lá em baixo os bichos se amontoavam disputando o naco. Na pressa, um deles engolia o pedaço inteiro e aí era ‘pescado’.

Mas para que serve um rato? Ora, os presos da galeria faziam um jogo, apostavam dinheiro e soltavam o rato no corredor do corredor. Aí aquela ala virava um inferno tal a gritaria tentando afugenta-lo. Ele, desorientado, geralmente entrava numa das celas e era morto com um chute. Quem conseguia, raspava a bolada.

Naquela noite, Arcides dormiu meio atravessado na cama. Nem viu o rato sair.

Voltando toda a noite, assim a ratazana foi se ambientando na cela. Claro, ia buscar seu direito, o quinhão de comida e tinha até uma latinha sua para o alimento. Acabou ficando tão íntimo que Arcides fez uma caixinha de madeira para leva-lo para o trabalho na cantina da cadeia. Ninguém botava a mão no Xororó, seu novo nome, por causa do topetinho arrepiado.

Com o tempo o rato passou a acompanha-lo ao seu lado, tal como um cachorrinho.

Mas um dia Arcides se atrasou e teve que ir sozinho preparar o café para os companheiros. Sem problemas, porque Xororó sabia o caminho.

E lá foi o rato sozinho atrás do dono, balançando as anquinhas do andar no chão liso e encerado do piso. Mas, azar, um guarda estranhou aquele rato nojento no meio do corredor, andando tranquilamente, como se estivesse desfilando numa passarela.

Não teve dúvidas: correu e alcançou o bicho. O animal só fez olha-lo curioso, não parou nem fugiu. Era a sua personalidade…  ‘O que será que este cara quer?’ deve ter pensado porque já estava acostumado com gente.

Então o guarda deu-lhe uma botinada violenta e fatal, com tanta força que jogou  Xororó contra a parede do corredor. Depois, recolheu o rato morto pelo rabo e sumiu.

Nhô Arcides sentiu a falta do amigo. De noite ficava horas esperando sua volta. Da cela olhava aquela ratarada zanzando no pátio na esperança de rever o amigo tão querido. Mas não tinha como. Mudou seu comportamento porque nas folgas ia ao pátio procurar Xororó, de buraco em buraco. Também passou a ser defensor intransigente dos animais… Aí de quem matasse uma mosca ou uma barata na sua frente! E os defendiam raivoso:

“- Gostar de cachorrinhos e gatinhos é fácil. Quero ver amar este outro tipo de animal que chamam de nojentos. Afinal eles também têm direito à vida!”

Sem nenhum sucesso, procurava uma explicação para o sumiço. E nestes casos surgem palpiteiros criando teses e mais teses. Um amigo contou-lhe que corria o boato que Xororó tinha sido vítima de um daqueles jogos de perseguição da galeria, numa aposta da ala dos presos assassinos… Perguntando aqui e ali, também deu em nada.

Enfim, o tempo foi mitigando a lembrança do rato amigo.

Quem me contou esta história jura que toda a vez que alguém falava do Xororó para provoca-lo, o cantineiro ouvia calado. Quando insistam, ele se lamentava: ou se julgava abandonado pelo amigo ou se culpava pelo seu desaparecimento.

E quando aquela  conversa voltava para as lembranças do Xororó, Arcides sempre se virava tentando disfarçar uma lágrima furtiva.

Do livro inédito ‘Pobrete mas Alegrete’