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Kafka, uma metamorfose coletiva

Por Luiz Ernesto Wanke – Está nas livrarias uma antologia, ‘Kafka, uma metamorfose inspiradora’, uma coletânea de autores que orbitam nossa Curitiba. Foi organizada pelo maestro Carlyle Pop, um autor talentoso e também um eterno incentivador da nossa literatura regional. Foi editado honrosamente por nossa maior editora, a Juruá, que teima em investir em sonhos num ambiente hostil da crise editorial brasileira. Neste deserto literário precisamos sim de autores, jovens principalmente, para desequilibrar esta desigualdade aprofundada pela falta de leitores.

A obra propõe uma empatia literária, uma postura inusitada que é de alguma forma contar uma história através do estilo e ou ideia de um escritor famoso. Já tinha acontecido com essa turma num livro de 2014, ‘Instruções à Cortázar’ que teve uma boa acolhida diante do público e crítica. Mas Dr. Carlyle adverte que o que se procura neste gênero não é um estilo absoluto, uma cópia ou mesmo, um plágio. O que todos os participantes se propõem é dar um toque numa história, um leve tangenciar que lembre o autor homenageado. Claro que é uma missão difícil porque são autores consagrados pelo modo peculiar de escrever e ver o mundo e por isto, carimbaram sua personalidade na literatura, tal como o gosto forte de um rabanete não nos abandona tão cedo.

O tema é pertinente. Metamorfose está presente dentro de cada um cotidianamente. Ora é uma menina que pretende transformar seu rosto com texturas e cores; ora é uma mãe que quer ver seu filho transformado fora das drogas; ou ainda alguém que precisa vencer a inércia adiposa para fazer um regime acompanhado de exercícios. E metamorfoses internas também, mudando pelo estudo; contendo gênios rompantes, sonhando acordado e almejando  tantos desejos, geralmente postergados para o futuro.

Como o livro é uma antologia – assim como na vida – há gosto para tudo. Alguns contam histórias divertidas, outros são mais sérios e há quem seja misterioso e de difícil interpretação. Particularmente exultei quando encontrei uma citação ao Mano Eno Teodoro Wanke na página 36 feita pelo escritor Antônio Torres. Quando o Eno estava fazendo a biografia do príncipe dos repentistas eu morava no Rio e lá testemunhei algumas vezes ele viajando para o nordeste ou o próprio Rodolfo Cavalcante Coelho indo à sua casa para acertar detalhes. O Eno tem uma obra de mais de 2.000 livros (poesias, trovas, memórias, contos, ensaios, clecs, etc.) que agora, depois do seu falecimento, está inerte.

Particularmente adoro histórias.

Aquelas mais lineares, com muita emoção que extravasa de dentro para fora num texto acessível e que tem um desfecho – pelo menos – lógico. Penso mais em ‘causos’ que contos. Não me agradam histórias que sejam muito explicitas – ou didáticas – em relação ao autor homenageado. Tem que ser que nem um perfume leve e gostoso que se percebe – sem excessos – suavemente. Também não gosto de coisas misteriosas que exigem um esforço interpretativo e pessoal, mas isto já é coisa de velho que odeia raciocinar. Este livro também trás um pouco deste tipo de literatura.

Enfim, ‘Kafka, uma metamorfose inspiradora’ é bem vindo. Todo sucesso a ele, a seu editor e seus autores.

Precisamos de todos!

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Lufadas de saudades vindas do passado

Por Luiz Ernesto Wanke – Uma maneira muito legal de visitar o passado é pesquisar jornais velhos. Descobrem-se muitos documentos importantes, mas também algumas lufadas de suaves brisas de saudades. Claro, esse vento do passado também pode trazer poeiras desagradáveis.

E nada mais terrível que a escravidão. Esses jornais estampam anúncios de crianças escravas, alguém querendo alugar um moleque pelo preço de oito mil reis, outro querendo um ‘escravo fiel’ para compras e um cruel, pedindo “uma negrinha e um moleque que não tenhão mais de 7 anos”. Crianças que não conheceram suas infâncias, sem escola, condenadas inocentemente e que, a partir daí foram separados dos pais sem dó nem piedade. Muito triste.

Outros anunciam escravos fujões. Mas como saber no meio de tantos escravos, de quem se tratava e como reconhecer um indivíduo invisível que não tinha cidadania? Pelos nomes? Ora, eles tinham um nome sim, mais como uma referência de posse. Por isto seus nomes únicos não tinham utilidade obrigando seus donos a capricharem na descrição (ou melhor, no enfoque cruel da maneira que eles viam seus escravos): “Fugiu no dia 24 de março p.p., a preta Martha, tendo os signaes seguintes: fula, papuda, gorda e tem um signal no braço esquerdo…” Ou este do escravo Antonio: “… de nação, 40 anos mais ou menos, alto, feio de rosto, barba por baixo do queixo, barriga grande, a unha do dedo direito da mão esquerda partida pelo meio e inchado…” Mais outro chamado Christovam: “meio fula, faltam-lhes cabelos no meio da cabeça, tem por volta de 25 anos de idade, fala fina e ar humilde…” Para terminar, o Sebastião: “… sem barbas, estatura regular, tem uma cicatriz no rosto, do lado esquerdo, procedida de dente furado, tem falta de cabelos pela continuação de carregar água, idade 18 anos mais ou menos e bem parecido…” Muito patético e desumano.

Nestes jornais podem-se resgatar também alguns valores sociais. Se existe alguma diferença daqueles tempos com os nosso é o conceito ético e bem delineado das relações humanas. Por exemplo, a tal ‘defesa da honra’: pisava-se em ovos quando uma notícia ou comportamento poderia chegar aos ouvidos dos ‘outros’ e ferir seu conceito certinho de bom cidadão. O mote era: ‘O que eles poderiam pensar?’ Esses exemplares de jornais antigos estão repletos de pessoas que, ao se mudarem de cidade, faziam questão de publicar no jornal que estavam ‘limpos’ e não deixavam nem dívidas nem encargos pendentes. Se tinha escafedido para nunca mais voltar, pelo menos ‘ninguém podia dizer um ai dele’.

Outros usavam o jornal para mandar recados pessoais e cifrados, mas, incógnitos. Este de 1/10/1856 é misterioso: “Senhor Raphael do bote-lhe do recreio. Diz VM muito bem: o bote foi bem dado, e o laço armado! Tomem palpavos! Lição gostosa. O desconfiado.” Um assunto que – presume-se – só os dois, ‘o desconfiado’ e o tal Raphael sabiam do que se tratava. Sim, porque passado algum tempo, este último não se fez de rogado e respondeu: “Snr. Desconfiado: se VM é de serra abaixo, bote-lhe a âncora, se é de serra acima, o laço, para a sociedade não ir ágarra. O Raphael” Mas o principal é que os dois estavam dialogando num mundo aparentemente constituído só por eles. Que se danassem os outros leitores!

(Assim como o leitor, o autor ficou curioso com o anúncio-recado e foi procurar alguma pista vasculhando os meandros desses mesmos jornais. Em outros tipos de textos, conseguiu três evidências: que palpavos quer dizer ‘aquele que foi enganado’, o termo ‘recreio’ está associado a um clube social da época, o Recreio Curitibano, cujo presidente era justamente o seu Raphael – em final de mandato – e finalmente, achou uma breve notícia de que o tesoureiro do clube poderia ter dado um desfalque e ter se mandado. Pronto, ‘o desconfiado’, que devia ser sócio do clube, estava ao mesmo tempo, xingando e cobrando do presidente o esclarecimento da ladroagem. Já o Raphael, em resposta, pediu prudência – a âncora e o laço – para conter a desconfiança do ‘Desconfiado’, justamente para o clube não terminar.)

Mas afinal, onde estão as tais ‘lufadas de suaves brisas de saudades’? Em anúncios como a instigante fuga de um ‘veado de estimação’: “Desapareceu da casa n.55 um veado pardo, manso, levando no pescoço uma estreita coleira de couro com guiso…” Ou ainda, a reclamação do redator do jornal assustado com a ‘carestia’: “Na capital do Paraná já se pede por uma carrada de lenha – dous mil reis!!! Viva a fertilidade!… E valha-nos, quem? Deos!” Outra pérola: “Quem tiver direito ao couro de uma vaca vermelha, que por engano se tirou, por ter morrido no banhado, dando signaes e marcas, se lhe entregará pagando as despesas, na Rua das Flores n. 1”. Como assim? Tiraram indevidamente o couro da vaca morta ‘por engano’e ainda querem tirar o couro do dono?

Mas a ‘joia da coroa’ está no anuncio abaixo, colocado aqui sem comentários, pois é auto explicável… Mas suas palavras trazem do passado a tal lufada de saudades:

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Seu Estefano

Por Luiz Ernesto Wanke –

(Durante o tempo que fui dentista na Penitenciária Central do Paraná ouvi muitas histórias dos internos. Esta, da morte do Seu Estefano é uma das poucas documentadas, no jornal interno, que o ‘Repórter Maluco’ – como ele se autodenominava – registrou no seu jornalzinho ‘Notícias das Grades’, mimeografado na secretaria da penita e distribuído entre os internos).

Tinha as mãos suaves e milagrosas de anjo como os companheiros de cativeiro alardeavam pelos cantos da penitenciária. No seu ofício de massagista entendia como ninguém de músculos doidos e nervos fora do lugar. Trabalhava como preso voluntário lá no fundão, na ala da saúde e numa maca improvisada. Na sua arte usava somente sua bendita mão, esfregando água como linimento e ia subindo nas massagens pelos arredores do problema chegando ao exato lugar do machucado.

Num lugar onde nada é de graça, ele não aceitava nada pelo bem que fazia. Recusava dos colegas até um ‘courinho de rato’, como chamam lá dentro uns trocadinhos de pouco valor. Quando um aliviado insistia, repetia orgulhoso que – graças a Deus – ele não dependia de paga:

“- Tenho dois filhos que qualquer dia desses vão aparecer na visita de domingo…” E como ninguém nunca viu no pátio nenhum desses parentes, ele arremedava sua desculpa: “- Sabe do sítio até aqui é chão!”

Como suas palavras fizessem parte de uma conspiração, ninguém se atrevia a perguntar mais nada. Todos disfarçavam virando o rosto. Mas do canto de olho lá estava sempre a lágrima furtiva que o massagista procurava disfarçar, tossindo.

Também estava implícito neste acordo silencioso do massagista e seus pares, que ninguém perguntasse mais nada. Sua história era repetida a toda sessão de massagem e ouvida automaticamente em silencio sepulcral.

Por sua vez, enquanto trabalhava, seu Estefano continuava sua prosa, agora mudando para outros causos mais alegres:

“- Sabe, quando eu era moço fui namorador… Mas durou até que conheci a falecida Maria na fazenda do compadre de meu pai. Nem terminei de botar o olho grande nela e me encantei desde a primeira vez… Estava sentada de costas, distraída, tirando leite da vaca quando eu cheguei por trás e taquei-lhe um beijo. Não sei o que me deu na cuca, tanto que a menina ficou desorientada e nem tirou seus olhos do ubre da vaca. Na surpresa, o susto fez que ela resvalasse no balde entornando todo o leite e tingindo de branco o chão lamento. Depois, deu no que deu e nos casamos”

Passado o papo nostálgico, a conversa era livre. Então o pessoal podia provoca-lo:

“- E aquela ‘chinfra’ (mulher bonita) da visita do domingo? Benza Deus, que mulherão!”

Parava a massagem e arrancava uma carcomida carteira do bolso, com as mesmas fotografias coloridas e sebosas para mostrar para os assistentes como se fosse uma  novidade:

“- Veja, está com a filharada criada como eu!”

Na semana que antecedeu o dia das mães seu Estefano tirou folga para preparar um bonito e vistoso cartão para a nova namorada quarentona. Desenhou um grande coração vermelho no centro da cartolina e cobriu-o colando um pedaço de veludo vermelho. Pediu para o companheiro de cela que copiasse em letras caprichadas as palavras bonitas ditadas pelo enfermeiro, falando de amor, felicidade e esperança.

No dia da entrega, infelizmente, o cartão ficou abandonado em cima da maca. Acharam-no morto na cama na manhã do domingo festivo. No sábado, tinha reclamado de uma dorzinha no peito, mas coisa sem importância, segundo ele relatou para os companheiros. Ia esperar até a segunda feira para consultar com o médico da cadeia.

E quando a segunda chegou e na penitenciária voltou à rotina de trabalho, os funcionários e guardas de segurança da ala da saúde ficaram chocados com a repentina perda, já que Seu Estefano era um cara querido por todos. Diante daqueles comentários aos bons que aparecem nestas ocasiões, um dos guardas encasquetou:

“- Destino cruel pro seu Estefano… Morrer assim? O que será que ele fez para merecer este castigo dos infernos?”

Alguém se lembrou:

“- Quer saber mesmo? Pergunte na secretaria pro Zé das Fichas.”

  O guarda foi mesmo consultar o prontuário do falecido, lá no prédio da administração. Voltou furibundo:

“- Então o que o velho fez de grave?”

“- Rapaz, numa noite escura em seu sítio, ele esfaqueou a mulher – aquela do balde de leite – esquartejou-a em nacos pequenos, colocou as partes dentro de uma mala, completou com pedras e atirou tudo no fundo do rio que passa atrás de sua casa.”

 

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A desgraça de uma pecadora

Copilado em linguagem atual por Luiz Ernesto Wanke.

(Retirado do diário do médico francês Raimundo Henrique des Genettes, que narrou ali sua viagem do Rio de Janeiro para Ouro Preto, fato ocorrido dia 8 de novembro de 1836. Esses manuscritos originais foram comprados no comercio de coleções em Curitiba por meu filho mais velho, Marcos Luiz Wanke na década de 70 e pertencem ao seu acervo).

Sua narração:

Com lágrimas de saudades despeço-me de Madame Marlière, do seu enteado Leopoldo e aproveitando a companhia do Sr. Manoel da Cunha sigo para o Presídio de São João Batista (hoje Visconde do Rio Branco, em Minas) onde cheguei no mesmo dia. Hospedo-me na casa do Coronel Geraldo, onde sou recebido com suma benevolência. A minha demora no arraial é pequena e nada há de curioso. Durante os dias no Presídio abrigo um sobrado no largo e nele me estabeleço para melhor trabalhar.

(A fazenda de onde Genettes saiu – hoje a cidade de Guidoval – pertenceu a Guido Marlière, um oficial francês fugido de Napoleão que veio junto com a Corte portuguesa. Mas Genettes não o encontrou porque ele tinha falecido naquele ano de 1836, três meses antes de sua visita. Marlière foi um grande sertanista brasileiro, somente comparado a Rondon, chefiou a Junta de Colonização dos Índios e Navegação do Rio Doce, cuja função era proteger os colonos pioneiros da Zona da Mata mineira do ataque indígena, promover sua aculturação, construir igrejas e contratar padres para ‘educar’ os nativos. Mas Infelizmente foram estas ações que extinguiram as etnias indígenas da Zona da Mata. Marlière estabeleceu seu comando em sua fazenda em Guidoval e a partir dali fundou vilas, explorou regiões selvagens dando nome a montanhas e rios).

Há momentos da vida em que somos atraídos como por um pensamento oculto, a algum lugar, a um sítio qualquer, sem que possamos prestar-nos conta do motivo que nos faz preferir esta ou aquela direção. Alguma coisa aconteceu assim, porque, contrariamente ao meu costume, tomei nesta tarde o caminho que se dobra a minha direita. Vou lentamente, a passo de meu animal e apenas caminhei trinta ou quarenta passos e gemidos pungentes como os de moribundos vieram ferir meus ouvidos e despertar minha atenção. Paro e escuto: conheço que os gemidos provem de uma capoeira fina que se estende a minha esquerda.

Esses gemidos ficam cada vez mais doloridos e mais perto de mim. Apeio-me e entro, não há porta. A um canto tições apagados e sobre três pedras, uma panelinha de barro, queimada e denegrida pelo fogo. Ao fundo, sobre um girao de varas com uma esteira em cima, uma menina de uns treze anos, magra e reduzida ao estado de consumição pela tísica pulmonar. O seu pulso febril anuncia-me que a morte está próxima. Os seus olhos brilham como estrelas rutilantes e deste brilho parece descortinar os abismos de além túmulo.

Coberta por uma camisa e saia apenas, as formigas cabeçudas já furaram esta roupa imunda e a pele está ferida em cem lugares. Antes de morrer, as saúvas vorazes atacaram este corpo, belo ainda, apesar da magreza e do marasmo. A moribunda fita-me e seus olhos fixam-se em mim, seus lábios murmuram: ‘água’!. Precipito-me sobre a panelinha e vou buscar o que ela quer. O córrego é perto e volto correndo, molho seus lábios que a espuma sangrenta mancha, enxaguo com meu lenço branco e dou-lhe um pouco de água a esta pobre menina que murmura um ‘Deus lhe pague’ que jamais me sairá da memória.

Animo a menina, dou-lhe esperanças que não tenho, digo-lhe que é moça e que reconquistará sua saúde. Também que achou um irmão, um amigo que vai buscar lhe os socorros que precisa, mas seu sorriso sinistro parece dizer-me que ela não crê nas minhas palavras. Enxoto novamente as formigas, mas elas voltam sem parar.

Monto a cavalo e vou até o arraial, muito perto. Salto em frente a um velho boticário, José Maria de Barros Alvino e ordeno-lhe que prepare um cordeal (xarope de ervas).

Enquanto José Maria providencia o pedido, vou para minha casa que fica em frente a sua farmácia, mando arrumar um quarto e um cama. Peço também uma rede para carregar a menina. Negam-me uma e outra coisa. A todas as minhas súplicas respondem que ela é tísica e que é muito perigoso. Já compreendo o segredo de tanto abandono, de tanta crueldade: é o medo desse mal que consome tantas existências.

Corro para achar o Coronel Geraldo, que mais ilustrado, empresta-me dois escravos e uma rede. Foi, necessário que eu, sob fé do juramento, atestasse que não havia perigo.

Passo na botica e levo o cordeal. Corro desta vez a pé, de tão perto que é, pois sou moço. Quando chego, ela não expirou. Dou-lhe algumas colheres deste xarope que diminuirá o fogo que abrasa seu peito. Oh, como ficou reconhecida! Uma lágrima corre destes olhos secos de tanto chorar. Sim, uma lágrima de gratidão que fará perdoar muitas faltas na presença de Deus.

Transportamos a menina para meu quarto. Um banho alivia as dores causadas pela voracidade das formigas, minha criada troca suas roupas, o cordeal acalma o peito e algumas colheradas de caldo a animaram para que durma. Dorme em paz, pobre menina, dorme sob a guarda de um amigo de poucas horas, mas que quer ser seu anjo da guarda!

Após duas horas, acorda. Ela pede-me para confessar, vou correndo à casa do vigário, peço para ouvi-la, mas é impossível. O medo e sempre o medo faz negar a pobre abandonada esta última consolação.

Volto horrorizado!

A menina em poucas palavras põe-me a par de sua história: filha de um fazendeiro do Pomba, cometeu uma falta e seu sedutor a abandonou. Seu pai a expulsou de casa sem nenhum recurso. Soube mais tarde que esse é o costume destas paragens em nome da defesa da honra. E pior, dessa relação teve sozinha um filhinho, na mata, que logo morreu.

Pelas três horas da madrugada deixava e existência. Eu apresentava-lhe a imagem de Deus crucificado. Sua mão apertava a minha e sua alma voou num sorriso terno, que me passei a dizer que Deus tinha perdoado a sua fraqueza.

O vigário não quis assistir seu enterro.

Os dois escravos do Coronel Geraldo levaram o corpo, acompanhado por mim, o único que não teve medo da infeliz.

 

Quem foi? – Raimundo Henrique des Genettes, foi expulso no Rio de Janeiro pelo capitão do navio francês Minerva, onde era médico de bordo, por ter assassinado um oficial num duelo no Senegal. Acabou se naturalizando brasileiro. (Liberal, participou na França da Revolução de 1830 e no Brasil, da Revolução de 1842, aquela do Theofilo Ottoni). Descobriu e explorou minas de ouro e diamantes no Rio Jaguara. Pioneiro em Uberaba chegou a ser prefeito. Desolado pelo falecimento de sua mulher, foi ser sacerdote católico na região do hoje Distrito Federal. Ali foi um padre ativo, explorou a região, fazendo o primeiro levantamento geológico de Brasília, descobrindo a ‘Cidade de Pedra’ de Pirenópolis e fósseis de animais pré-históricos. Assim como Marlière, outro injustiçado pela História de nosso país.