As obras são inspiradoras e algumas incríveis como Irokó, a Árvore Cósmica, da artista baiana Nadia Taquary, na 36a Bienal de São Paulo. São obras e instalações contemporâneas que se afirmam como uma escuta sensível do mundo, porém complexa para o público leigo.
Escolhi Iorokó, a Árvore Cósmica, como ilustração destaque, por ser uma instalação de uma beleza estética impactante e por nos remeter ao título da Bienal- Nem todo o viandante anda estradas.
O tema desloca o olhar da ideia de percurso físico para trajetórias subjetivas, simbólicas e históricas. O viandante, aqui, não é apenas quem se desloca no espaço, mas quem atravessa estados de existência, conflitos sociais, memórias ancestrais e formas diversas de pertencimento.
A obra de Nádia evoca o conhecimento ancestral pelo ciclo da vida. A gameleira foi a primeira árvore plantada e, segundo a tradição, foi por ela que os orixás desceram à Terra, e sobre ela pousaram as feiticeiras Ìyámis.
Ìrókó, orixá senhor do tempo e da ancestralidade, passou a ser cultuado no Brasil por meio da gameleira – árvore presente nos terreiros de religiões de matriz africana, sinalizada por uma bandeira branca. Ìrókó é o antídoto para os males, a calma após a tempestade, a inevitabilidade da vida.
AÁrvore Cósmica é viandante no tempo subjetivo, a caminhante, que simboliza a cultura de um povo e traz com ela toda a simbologia de crenças e conhecimento ancestral.
Da mesma forma a artista marroquina Amina Agueznay, que em Vista de Talisman of Henna – Variation #1 e #2, desenvolve uma prática artística profundamente enraizada no saber artesanal e nas histórias humanas.
Seu trabalho parte de uma abordagem de campo que privilegia a imersão, a troca e o compartilhamento de habilidades com artesãos de diversas regiões do Marrocos.
Cada instalação e cada objeto encarnam um equilíbrio delicado entre o respeito pelo legado técnico (ou conhecimento ancestral) e sua reinvenção dentro do contexto contemporâneo.
Myriam Omar Awadi (1983, Paris. Vive em Le Tampon, Reunião) é artista franco-comorense. Sua obra dá voz a narrativas muitas vezes inaudíveis, buscando as centelhas reacendidas por seus últimos suspiros. Milhões de almas e espécies, moldadas em madeira, argila, vidro, bordado, lantejoulas cintilantes e água do mar gotejam sobre microfones e despertam de suas extinções premeditadas pelo suor de nossa escuta desviante. Elas contam histórias para jardins, embalam o suprematismo mórbido e cantam uma política dissolvida nos humores líquidos do amor. Fonte Bienal de São Paulo.
Esses tecidos formam um terreno visual e sônico que oscila entre a ocultação e a revelação. Suspenso dentro de um arranjo de microfones e alto-falantes em forma de árvores – evocando as raízes emaranhadas dos manguezais –, o tecido pende dos galhos oscilantes dessas formas invisíveis. A instalação escultural e sônica evoca a epifania de uma floresta de mangue, com todas as esculturas feitas de madeira. Com base no Debe, uma tradição ritual das ilhas Comores liderada por mulheres, Omar Awadi invoca o bordado não apenas como adorno, mas como uma forma de pontuação – uma maneira de manter o que não pode ser dito.
As obras de Ruth Ige falam sobre o tempo como testemunho. A série Pois o tempo é testemunha da humanidade, utiliza tinta acrílica, espirulina azul, argila brasileira, folhas secas de ugu, sobre tela.
Suas figuras, encapuzadas e sem rosto, não se oferecem ao reconhecimento. Elas permanecem contidas, míticas, suavemente monumentais. O que emerge não é um retrato, mas uma presença – uma forma de ser que detém seu próprio poder.
O azul intenso reflete o infinito, um espaço, a memória. Suas telas operam como estuários antropológicos, contendo heranças ecológicas, espirituais e ancestrais em seu próprio pigmento. As pinturas assumem uma qualidade lenta e sedimentar – como se fossem formadas ao longo do tempo, em vez de feitas de uma só vez.
As obras reunidas não falam em uníssono, mas formam um coro dissonante que reflete um mundo fragmentado, marcado por deslocamentos forçados, crises ambientais, disputas de narrativas, apagamentos históricos e, ao mesmo tempo, pela persistência de saberes tradicionais, espiritualidades e formas de resistência.
Ao propor que nem todo viandante anda estradas, a Bienal reconhece trajetórias invisibilizadas: caminhos que não aparecem nos mapas oficiais, mas que atravessam corpos, culturas e tempos. Caminhos de povos originários, de diásporas, de mulheres, de comunidades marginalizadas, de sujeitos que reinventam a humanidade a partir das bordas. A prática da humanidade, portanto, não é neutra nem universal; ela é situada, plural e profundamente política.
Como voz poética de seu tempo, a Bienal de São Paulo não busca ilustrar a realidade, mas tensioná-la. Assim, a Bienal reafirma seu papel fundamental: ser um espaço onde a arte não apenas representa o mundo, mas participa ativamente de sua reinvenção, afirmando que a humanidade, antes de ser uma condição, é um exercício contínuo.

