O crochê,costura e o bordado nunca deixaram de estar em evidência e enfeitarem decorações de ambientes, roupas e outros artefatos. Hoje as instalações de arte contemporânea têm criado conceitos incríveis com esses trabalhos manuais.
Mas muitas mulheres no passado detestavam essas atividades domésticas artesanais e não tinham nenhuma habilidade para tais artes. Isso porque elas, ainda meninas, eram obrigadas a aprender já nos primeiros anos de escola a bordar, costurar e fazer crochê com perfeição.
Minha mãe foi uma dessas mulheres que não se enquadrou no padrão de seu tempo e bordar foi um suplício para ela. Uma toalha de mesa, a da foto, de cachos de uva em rococó, foi o legado que nos deixou de sua rebeldia silenciosa, até discreta.
Essa guirlanda bordada tem muita história enrolada em seus inúmeros rococós e por muitos anos permaneceu inacabada.
Aí que começa nosso “causo”, diga-se de passagem, lembranças proporcionadas por uma toalha de mesa que dona Odette carregou no seu enxoval de casamento. Não como algo essencial, mas como um objeto esquecido em algum canto da casa que se olhava e não sabia o porquê de estar ali. Até hoje não entendi o apego dela pela toalha que trazia a lembrança de sua incompetência.
Interessante que capturei seu apego pela tal toalha e encarei como um desafio acabar o bordado. Depois de pronta a afetividade pela tal peça foi transferida para minha filha Paula, que também a usou em sua casa. Mas quando decidiu mudar de cidade se desfez de quase tudo, surgiu a grande dúvida: o que fazer com a toalha…
Uso digno para toalha
Procuramos um uso digno dentro da família e não encontramos entre as netas, filhas ou cunhadas uma mesa da metragem igual da “dita cuja” .
A toalha é quadrada e pequena, de cor bege, com guirlandas de cachos de uvas, bordadas em rococó, nas quatro pontas, entremeadas com folhas do tipo comum, não a de parreira, bordadas em verde estridente no ponto meia e cheio, e finalizada com uma franja de crochê da mesma cor das uvas.O fio vermelho utilizado para bordar as uvas é em cor degradê para dar noção de sombra e luz.
Não podemos dizer que é uma toalha de extremo bom gosto e delicada, embora seja possível admitir que ela é original e faz “vista” quando colocada em uma mesa.
As cores estridentes das uvas e das folhas e o tecido ainda firme nem de longe demonstram que é uma toalha quase centenária ( os produtos de antigamente eram sempre fabricados para chegar perto da eternidade).
Doar ou não doar, eis a questão! A resposta chegou quase que imediata…
–Nãooo!
Rebeldia
Seria um crime deixar o símbolo da inconsciente rebeldia de minha mãe contra a função que definia a mulher como “rainha do lar” e ser educada para isso, ser relegada à condição de entulho e fora de uso. Pudera, a pobrezinha foi obrigada a bordar a toalha quando tinha 10 anos, como tarefa de uma aula de trabalhos manuais no quarto ano primário – o referente hoje a quarta série do ensino fundamental.
É importante destacar que ela apenas começou o bordado escolar . A toalha encerrou o ano letivo inacabada. Mamãe depois disso nunca mais pegou naquela agulha, provavelmente lembrança torturante para ela.
Bordar com 10 anos de idade
A aborrecida tarefa de bordar perfeitos rococós aos 10 anos idade foi realizada numa guirlanda apenas e alguns cachos da segunda, e só. Foi dessa forma que fui apresentada à toalha, com o bastidor e os fios prontos para serem usados, pois minha mãe, num ataque de insensatez incluiu a toalha no seu enxoval de casamento. Provavelmente , tinha esperança de um dia, talvez, gostar de bordar. “É ponto rococó”, dizia ela com orgulho.
Desta forma, na minha adolescência, quando mamãe começou a tentar me educar para ser a rainha do lar, me deparei com a toalha inacabada, ainda com o bastidor e o fio colorido.Me dava até dó de ver a toalha esquecida dentro do cesto de bordar, sem utilidade.
Bordado perfeito
Vale destacar aqui, que eram poucos cachos de uvas bordados, mas o que estava feito, era perfeito, mais que perfeito, no direito e no avesso. Os bagos de uva pareciam saltar fora da toalha de tanto ponto em rococó.. as bolinhas eram cheias de nozinhos tão apertados um do lado do outro que pareciam uma coisa só. Uma simbiose de fios em alto relevo. Esse era o charme da toalha.
Mamãe não perdia a pose quando falava dela.
– Bah… eu me enjoei de bordar e tinha preguiça. A professora era uma chata ( com certeza deu alguns puxões de orelha nela). Não podia deixar um fio solto por trás que era preciso desmanchar e começar tudo de novo. Calculem que a toalha já estava com uns 40 e poucos anos… Inacabada e ainda na esperança de ser bela e completa.
Já casada, lembrei da velha toalha e senti vontade usar a exótica peça na minha mesa nova. Neste momento, acreditei piamente que poderia me transformar numa mulher cheia de predicados domésticos e bordar os rococós.
Não vai ser fácil”, disse mamãe. “Você não pode deixar espaço entre um rococó e outro. Porém, mais do que rápido empenhou-se na tarefa de me ensinar, entre risadinhas…. Acho que durante todos estes anos ela também alimentou a curiosidade de ver a toalha pronta.
“O ponto se faz com o enrolar do fio na agulha. Tem que ser 10 enroladinhas e depois enfia agulha no tecido,que resulta num nozinho. Assim, de nozinho em nozinho, um pertinho do outro, você preenche o espaço do bago da uva”,explicava ela. Veja bem, recomendava, “ o enroladinho tem que ser bem apertado e os pontos devem grudar um do lado do outro”.
Lá me entreguei ao deleite do bordado, evidentemente, deleite foi só no começo. Imaginem fazer mais de 100 enroladinhos num só bago de uva! A coisa não rende e o trabalho não aparece. Aí, impacientemente, comecei a espaçar os rococós. Minha guirlanda acabou rápido, mas o resultado
Desastre
Que desastre! Nem se compara com os rococós da mamãe. Mas não deu outra, entendi porque minha mãe nunca mais pegou nesse bordado.
É um verdadeiro jogo de paciência. Aí cheguei a conclusão que não era trabalho para qualquer rainha do lar. É para uma artista verdadeira criar e produzir efeitos com linha colorida.
Prima
Lembrei que minha prima Cleusa Fraxino tem esta habilidade. É uma verdadeira artista no bordado. Assim, para encurtar a história fui pedir socorro a prima e confessar a incompetência artística como bordadeira. Uma falta de jeito que passou de geração a geração.
Aí a toalha ficou pronta. Claro que não ficou nenhuma maravilha em matéria de bordado. Os perfeitos eram os da mamãe. A guirlanda magrinha e indecentes era a bordada por mim. E outros rococós quase parecidos com o da mamãe eram da prima,incluindo o bico de crochê feito pela tia em torno da toalha, mãe habilidosa de minha prima. Prova que certos “dons” passam de mãe para filha.
Moral da história, é um pedaço de tecido trabalhado em bordado, de gosto duvidoso, porém para as mulheres da família diz muito mais:
Tem vida nas emoções embaraçadas, entremeadas nos rococós.
A senhora que começou esta história fez sua passagem aos 87 anos e sempre disse a suas filhas: mulher que fica só dentro de casa não é valorizada. Era o brado de revolta dela por uma situação que não conseguiu alcançar, ao menos as filhas não seriam iguais.
Hoje, depois de ter seguido o conselho de mamãe e saído pelo mundo afora realizando tarefas profissionais, conquistando minha independência e sendo valorizada dentro de casa, penso que nem oito e nem 80.
A mulher moderna está mais independente e isso faz com que o homem participe mais das atividades domésticas. A arte neste momento coloca em evidência práticas que no passado eram quase que exclusivamente femininas. O texto já foi publicado em 2016 e reformulado agora, considerando que artes manuais como bordado, crochê, costura são maravilhosas habilidades que a arte contemporânea se apropriou para dialogar com observador, expressar identidades e memórias que inserem homenagens às nossas avós e bisavós.
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