Artista plástica Dani Sateré, da etnia Sateré-Mawé. Seus quadros retratam a memória de seu povo.

Indígena sempre contemporâneo na arte.Taquiprati e a Mostra de Manaus

Indígena já nasce artista, isso é certo! Seja ao pintar seu corpo ou manifestar sua criatividade em desenhos, esculturas que representam uma arte repleta de símbolos e significados.

Manaus mostra essa realidade na sua segunda edição de Arte Indígena e por ela é possível afirmar que a poética artística do índio sempre foi contemporânea. 

Hoje, como em tempo algum, arte indígena entrou no circuito das grandes exposições internacionais. Exemplo disso são as obras de Jaider Esbell, na Bienal das Artes em Veneza e no Brasil, na Bienal de São Paulo junto  com mais artistas de diversas etnias.

Mas o que nos levou a falar sobre arte indígena foi o interessante artigo do amigo José Ribamar Bessa Freire, em seu site Taquiprati: “O conhecimento da arte evita o extermínio indígena?”(Leia aqui). Bessa participa com a editoria do PanHoramarte do movimento Estados Gerais da Cultura, que luta em defesa da arte e valores coletivos, sobretudo para a volta do Ministério da Cultura.

O artigo, além de divulgar a 2a. Mostra de Arte Indígena de Manaus, que permanece até o dia 31 de outubro, no Palácio Rio Branco, coloca em pauta a causa indígena num momento tão sério que estamos vivendo, com mortes, perseguições, garimpo ilegal e invasões em terras indígenas.  

É legal lembrar que o nome pouco comum do site Taquiprati tem uma história. 

“Taquiprati, em amazonês, é um cotoco. Cotoco, em amazonês, é  um gesto que consiste em erguer o dedo do meio da mão, abaixando o anelar e o indicador. É uma espécie de “banana” amazônica, porém mais discreta. Uma “banana” você dá quando quer criticar alguém, às vezes é usada de forma obscena para ofender. Você dobra um braço fazendo um L, fecha a palma da mão voltada para cima, enquanto a outra mão agarra o músculo do braço dobrado, cujo antebraço é levantado. É o que os franceses chamam de bras d’honneur.”  Para saber mais visite a página aqui.

Reproduzimos abaixo o artigo do professor Bessa, O conhecimento da arte evita o extermínio indígena?:

"Por que você pinta seu corpo?" - pergunta o missionário. O indígena responde: "E você? Por que não se pinta como eu pinto? Quer se parecer com os bichos?". (Diálogo séc. XVIII. Iandé, 2006) Foto, via site Taquiprati

“Residentes em Manaus, 29 artistas indígenas pertencentes a 12 povos estão expondo 52 obras de arte na 2ª Mostra de Arte Indígena inaugurada nesta quarta (5) no Palácio Rio Branco com a curadoria do antropólogo Tukano, João Paulo Barreto, para comemorar os 353 anos da cidade. “Somos a capital indígena do país” – declarou o presidente do Conselho Municipal de Cultura (Concultura), Tenório Telles, que destacou o compromisso da entidade com os povos originários.

Com os recursos que tem, Manaus entra assim no circuito das grandes capitais, a exemplo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), que inaugurou no final de agosto, a mostra Histórias Brasileiras para rever criticamente a história do Brasil, com a exposição de 400 trabalhos de 250 artistas, vários deles indígenas. Na ala Retratos, Yacunã Tuxá, artista nascida em Rodelas (BA), se pintou com a bandeira do arco-íris. A Bahia sabe escolher o que é melhor para o Brasil.

Talvez por confiar no poder da arte, suspeito que se exposições como essas recebessem sistematicamente, em visitas guiadas, alunos de nossas escolas, o Brasil se insurgiria contra as matanças recentes noticiadas na Folha SP:

“A CADA 3 DIAS, 1 INDÍGENA MORREU DE FORMA VIOLENTA EM SETEMBRO” (03/10).

“INDÍGENAS PATAXÓS DENUNCIAM NOVOS ATAQUES NO SUL DA BA” (09/09).

“INDÍGENAS VÃO À JUSTIÇA CONTRA 60 PEDIDOS DE GARIMPO QUE PODEM ATINGIR 45 MIL” (22/08).

“SOB BOLSONARO, INVASÕES E GARIMPO EM TERRAS INDÍGENAS AUMENTAM 180%” (18/08).

A facilidade de acesso às armas, a Funai presidida por um delegado de polícia e o receio da derrota do atual presidente recrudesceram as mortes e as invasões de terras indígenas pelo garimpo ilegal, grileiros, madeireiros e fazendeiros sem escrúpulos, que agora têm pressa. Contra eles, a arte.

A arte necessária

– “Arte é vida. A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo, de compreender e suportar a realidade e de transformá-la, tornando-a mais humana” – escreveu o filósofo austríaco Ernst Fischer em “A Necessidade da Arte”. Sem arte, viramos bicho. No Brasil há “bichos” que não pintam, odeiam quem pinta e ignoram a arte dos indígenas que eles assassinam. Há outros bichos ignorantes que não matam, mas são cúmplices, porque não protestam contra tais crimes, muitos deles sem punição.

Trata-se de “genocídio, de invisibilidade, de estereótipo e de racismo repetido a cada dia” – diz a conhecida artista Daiara Tukano:

– “O que somos nós? Peças raras? Exóticas? Guardadas em caixinhas nos museus depois de mortos? Nós somos povos vivos, livres, dignos. Somos e sempre fomos contemporâneos”.

É na afirmação dessa liberdade e dessa contemporaneidade que reside o valor de exposições como as de Manaus e de São Paulo. Artistas presentes em mostras nas duas cidades têm reconhecimento nacional e no exterior. É o caso de Duhigó Tukano, nascida em Pari Cachoeira, filha de Tukano e mãe Dessana, que veio morar em Manaus, em 1995, e promoveu o diálogo de sua arte original com técnicas adquiridas no curso de pintura da Escola de Arte Dirson Costa. Ela é a sétima artista amazonense a ter um quadro no acervo do MASP, o museu mais importante do hemisfério sul.  

Este quadro pintado em 2019 em tinta acrílica sobre madeira, intitulado Nepū Arquepū, (rede macaco), recria o interior de uma maloca Tukano, o parto, o descanso da mãe na rede, os cuidados dos parentes e do pajé, narrando o nascimento de um bebê. Além do valor estético, possui interesse histórico e etnográfico por destacar aspectos da cultura de seu povo.  (tela Duhigó Tukano).

Grafismo indígena 

Outro artista presente na 2ª Mostra de Arte em Manaus é Dhiani Pa´saro, nascido na aldeia Tainá, filho de Wanano e mãe Kobéua. Fluente em três línguas – a paterna, a materna e o Tukano, além do português – sua trajetória é semelhante à de Duhigó. Veio morar em Manaus aos 23 anos e formou-se em Pintura e Marchetaria na mesma Escola Dirson Costa. Sua obra presente na 1ª Coletiva Internacional de Artistas Amazônicos, em Nova York (EUA), expressa a natureza mítica aliada a técnicas sofisticadas e variadas. 

As técnicas originais são passadas desde a infância de uma geração a outra, através da oralidade e da observação, com o uso de pigmentos explorados a partir de experiências com sementes, terra ferruginosa, urucum, jenipapo, pó de carvão, suco de pau-de-leite, calcário. O grafismo indígena tradicional se apresenta em muitas formas artísticas de comunicação: na cestaria, na cerâmica e nas pinturas do corpo – braços, mãos e rosto, porque afinal ninguém é bicho.  (tela de Dani Sateré)

 

A diversidade pluricultural de Manaus, que abriga tantos povos e tantas línguas, está representada pelos artistas dessa 2ª Mostra organizada pela Fundação Municipal de Cultura (Manauscult) e pelo Concultura, como reconhece o curador Tukano João Paulo Barreto, que ressaltou a descortinação da presença indígena na cidade na cerimônia de abertura:

– É preciso quebrar os preconceitos e abrir caminhos para o diálogo entre os diferentes povos que habitam nesse território com concepções próprias de existência e manifestações culturais.

Talvez a partir dessas mostras, moradores de Manaus possam seguir o exemplo dos alemães, que ficaram deslumbrados com a exposição da cerâmica Kadiwéu de Mato Grosso do Sul, do séc. XIX, realizada pelo Museu Etnográfico de Berlim, cujo acervo possui coleções da arte desse povo nessa época.

O deslumbramento levou os residentes do Bairro Amarelo de Berlim a decidirem para que as fachadas dos edifícios fossem embelezadas por 50.000 azulejos, com desenhos feitos por seis mulheres, artistas Kadiwéu, que foram convidadas, em 1998, para a inauguração do bairro assim reformado. Elas aproveitaram para visitar o Museu, onde viram uma variedade de desenhos geométricos e ornamentais, pintados em cores fortes e vibrantes, com linhas retas, curvas, paralelas espirais, em ziguezague, feitos por suas antepassadas. 

Essas coleções foram recolhidas durante a guerra do Paraguai. Fuzileiros navais acamparam na aldeia Kadiwéu, as artistas observaram a farda de gala do almirante, imaculadamente branca, cheia de adornos. Habilidosas em outro tipo de desenho, elas pintaram o corpo do cacique: jaqueta com ombreiras, dragonas de amarelo-buriti, punhos e botões de ouro, calça branca com listas douradas, presilha e galão de ouro, sapatos com fivelas, peito condecorado com medalhas. Pintura tão realista levaria milicos a bater continência para o almirante Kadiwéu assim uniformizado.

 

 

O mundo inteiro reconhece a beleza produzida pela arte indígena. E Manaus? Quando seus moradores pedirão desenhos indígenas para as fachadas de seus prédios? Essas mostras contribuem para que, um dia, os amazonenses batam continência para a arte indígena e protestem contra o assassinato de seus líderes. 

Os artistas dos quadros apresentados na 2ª Mostra de Arte Indígena são: Dani Sateré, Tuniel Auaretê Mura, Tayná Sateré, Elisete Ticuna, Jaime Diakara Dessana, Francisco Yarikawa Kokama, Francisco Tchampan, Maricaua Kokama, Kawena Kokama (Clã Maricaua), Chermie Ferreira Kokama, Duhigó Tukano, Dhiani Pa’saro Wanano, Iwiri-ki Apurinã, Yupury Tukano, Sãnipã Apurinã, Amadeus Sateré, Jorzene Sateré, Mayra Bello Mura, Seanny Munduruku, Ivan Barreto Tukano. Os trabalhos em Artesanato, são de:  Adriana Martins Baré, Lino Mura, Natália Ticuna. As peças em vestimentas são de: Angélica Ticuna, Mercedes Tukano, Neide Miranha, Seanny Munduruku, Mayra Bello Mura, Elisangela Oliveira Kulina.”  Fonte Taquiprati.

 

* Defensor das línguas indígenas necessárias à preservação da diversidade dos idiomas tradicionais brasileiros, José Bessa Freire é Doutor em Literatura Comparada, coordenador do Programa dos Povos Indígenas (UERJ) e professor no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO). Autor de “Rio Babel, A História das Línguas na Amazônia”, entre outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

 

 

Daiara  Tukano fala sobre cultura e arte em Artérias. Vale a pena assistir seu depoimento. A artista é descendente do povo Tukano, do Alto Rio Negro no Amazonas, fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Nasceu em São Paulo, em uma família de lideranças indígenas, em meio a um contexto político de movimentação social indígena antecedente à Constituinte. Mudou-se para Brasília com a família onde vive atualmente com seus irmãos. Seu avô, seus tios e primos vivem na Aldeia Balaio, próxima ao município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas e ela vive entre a aldeia e a cidade. Fonte Wikipédia.

“O Brasil precisa abraçar a diversidade dos povos”, como diz Daiara Tukano. Também fala que na língua dela não existe uma palavra para arte porque o conceito de arte é uma visão ocidental, no entanto, o que não significa ausência de poética artística e sensibilidade no olhar para o mundo. O indígena é essencialmente arte, ou seja faz do cotidiano uma obra de arte representando-a nas cestarias, no corpo, nas cerâmicas, nas telas. que revelam sua memória ancestral, histórias e interpretação do universo que o rodeia.

Comments are closed.