Quando entrei naquela sala de aula repleta de alunos europeus concentrados, num silêncio absoluto, me senti, num primeiro momento, fora do ninho. Todos estavam atentos à explicação daquela professora italiana que colocava suas considerações sobre o “belo” e o conhecimento em psicanálise, citando Freud, filósofos como Nietzsche.
Fui aos poucos deixando a timidez de lado e procurando captar o fio da meada daquela aula de história da arte ministrada num italiano erudito e com informações tão profundas sobre o que é o belo na arte.
O belo, segundo Freud, é quando você atinge o “non lo so che” – o não sabido– dizia a professora dramatizando a entonação.
Pequena em estatura e gigante em conhecimento
Maria Letizia, seu nome, professora da Sapienza, Universidade de Roma, tinha pequena estatura, corpo miúdo, vaidosa e impecável nas roupas sóbrias, habitual para uma professora doutora universitária.
Era tão pequena de compleição física que ao chegar na sala, mal dava para enxergá-la em meio aos alunos, no entanto, quando terminava de abrir as janelas para arejar o local, preparar o computador e a tela de projeção, gestos realizados como um ritual quase sagrado, meticulosos, atentos aos detalhes e quando iniciava a falar, se tornava gigante.
Era como se a alma alçasse voo e seu olhar atravessasse o espaço real e atingisse um outro universo e lá encontrasse idéias iluminadas e assim, com essa luz , como num transe, encontrava-se com as mentes daqueles que a escutavam com atenção.Eu estava neste grupo. Me sentia hipnotizada pelas suas palavras e, claro, dentro do meu cérebro tentava colocar em ordem as idéias e aos poucos ia entendendo a “loucura lúcida” da teoria do belo.
Lirismo dos italianos
Um fato interessante que observei no comportamento dos italianos, em sua maioria, foi de que vivenciam intensamente a explicação que estão dando como se estivessem encenando um teatro, ou uma ópera.
Têm lirismo nas palavras, dão sentido ao gesto. Assim era Maria Letizia dentro da sala de aula. “Funzione del bello e la declinazione delle n-iente nella critica d`arte dopo Freud”( Função do belo e a declinação do n- nada na crítica de arte depois de Freud) era o nome da disciplina. Pudera, com este nome não era possível ser diferente.
Um italiano objetivo perguntaria mais ou menos assim: “ma cheeee? che c’entra questo? ” – pra que serve isto? Creio que ficaria mais pasmo perguntando porque uma brasileira estaria ali participando das aulas, sem ser artista.
Pra que serve isto?
Também me perguntei várias vezes o que estava fazendo naquela sala e porque queria tanto me envolver com o “belo”, especialmente porque até agora tinha lido poucas obras de Friedrich Nietzsche, e sobre o famoso psicanalista gostava de brincar com a frase “Freud explica”.
Para ajudar, na época falava um italiano mais para o coloquial do que para o erudito. Era uma estrangeira numa universidade européia, sem a pretensão de conquistar um título ou galgar algum degrau na hierarquia acadêmica.
A verdade é que eu precisava de mais conteúdo para ter condições e fazer críticas sobre um trabalho artístico. Por isso, é fundamental saber qual é a função do belo para o homem, para um artista, para um espectador ou apreciador de obras de arte.
A função do belo
É mais ou menos que Maria Letizia explicava:
“A função do belo, Freud introduz pela psicanálise. É alguma coisa que repelimos e que atinge a ‘ignorância essencial’ um ‘non so che ’ – o não sabido. Algo diferente, involuntário, que faz atração imprescindível sobre esta resistência.
O trabalho de atração sobre a repulsão é a obra. É por isso, que para entender “o belo” é preciso manter presente a psicanálise – porque é por ela que se explica o fato que o individuo em seu inconsciente é transformado e como acontece essa transformação para se aproximar do belo.
O que é transformado não é somente o individuo consciente, mas é aquele do oposto, do gozo, sobretudo do inconsciente, que a partir dos efeitos da pulsão ( impulso vinculado à linguagem, a letra ) pensa, sonha e diz, e se aproxima do belo”.
Psicanálise
Portanto, a psicanálise tem uma função também terapêutica , mas ‘a você te interessa tanto como terapia quanto como um método de conhecimento’. Um exemplo é o pôr do sol, que é igual quase todos dias e quase não se faz caso dele. Mas quando e se , alguém improvisadamente o vê e o aprecia e o coloca luz – “mette in luce”- este pôr do sol, sim, lhe desperta atenção e vem ao seu encontro como se tivesse marcado hora.
Neste momento o abriga e o acolhe- como qualquer coisa que craveja na sua verdade em questão, do qual não sabe: e o elabora. E neste movimento, por certo, vem o tremendo ( como o poeta alemão Rainer Maria Rilke diz, “porque o belo não é tremendo ao seu início) cada um é, e vem poeta”.
Depois deste rodopio mental em que se precisa de muita concentração e silêncio absoluto para captar o “sentido da coisa” finalizo esta confabulação comigo mesma e com você leitor, sem começo e sem fim. Finalizo ao descobrir que a minha poetisa preferida, Helena Kolody, com certeza, entrava no estado do “não sabido” para escrever seus maravilhosos poemas, e cito um pequeníssimo que diz tudo sobre o tema em poucas palavras:
Loucura Lúcida(HK)
Pairo, de súbito
noutra dimensão
Alucina-me a poesia
loucura lúcida
*Foto> O grito, de Edvard Munch
Maria Letizia Proietti é professora e doutora da Universidade Sapienza, de Roma.