“Militante, intimidadora, complexa, cansativa e dialética”. Estes foram alguns dos adjetivos usados pelos críticos de arte italianos e também pela jornalista brasileira Sheila Leiner, numa resenha ( como diz ela) publicada no Estado de São Paulo, sobre a 56a. Mostra Internacional de Artes, da Bienal de Veneza. As críticas atingem, sem dúvida, em primeiro lugar o curador, o nigeriano Okwui Enwezor , que é crítico de arte, educador, poeta e escritor. Ele é o primeiro curador africano a conduzir a bienal veneziana, que neste biênio completa 120 anos de existência.
– Corajoso!
Coragem é a palavra mais precisa e correta para definir a atuação do nigeriano neste Bienal, que traz à tona temas indigestos sobre injustiças sociais e por sua origem, traz também “problemáticas derivadas de sua identidade”, como diz o crítico italiano, Ludovico Pratesi. Pela reação, a tentativa de mostrar pela arte “Todos os futuros do Mundo”, o vislumbrar de todos os futuros, efetivamente não agradou aos europeus e aos críticos que vão a reboque da opinião geral. Corajoso porque este curador é um estranho no ninho.
A editoria do PanHoramarte irá expressar sua crítica após a visita à mostra, embora já possa adiantar que todas as bienais realizadas nesta última década, tanto a de Veneza quanto a de São Paulo, tem expressado a realidade do mundo contemporâneo. São complexas sim, e essencialmente impermanentes, passageiras. As obras e instalações conceituais representam o que é o mundo contemporâneo: individualista, comercial e consumista.
Ao denominar vulgar a obra da britânica Sarah Lucas, a jornalista Sheila Leiner, do jornal brasileiro, na matéria que define como militante e intimidadora a Bienal de Veneza, não argumenta sobre o porquê desta opinião sobre a obra britânica que expõe o corpo feminino. Na verdade, a questão da mulher, considerando as mais profundas como as agressões, o assédio sexual, o aborto, sempre ferem as regras convencionais dos ditos bons costumes.
É bom lembrar do coletivo “Mujeres Creando”, das bolivianas que trataram do aborto na Bienal de São Paulo (2014). A obra foi proibida e provocou “frisson ” (tremor) nos grupos mais conservadores, que escondem “debaixo do tapete” as mazelas sociais e vivem num mundo construído a partir do seu próprio umbigo.
Ao contrário, a opinião dos críticos italianos são bem estruturadas e dentro de uma visão européia sobre arte contemporânea. Veja três reflexões sobre os trabalhos da Bienal, cuja publicação original foi no site italiano Exibart.
Ludovico Pratesi. Olhar e conhecer a outra metade do mundo
Ludovico Pratesi é curador e crítico de arte. Diretor artístico do Centro de Artes Visuais de Pesaro e Diretor da Fundação Guastalla pela Arte Contemporânea.
Complexa. Esta é a palavra justa para definir a 56a. Bienal de Artes Visuais, a primeira tendo como curadoria um africano, depois de uma longa série de italianos ( de 1895 a 1993), um francês ( Jean Clair, 1995), um suíço (Harald Szemann,(1999 a 2001), dois espanhóis (Rosa Martinez – Maria de Corral, 2005), um americano ( Robert Storr, 2007) e um sueco (Daniel Birnhaum, 2009).
Um dado que não é pouco, considerando o fato que Okwui foi também o primeiro curador não europeu da Documenta, em 2002, além de ser fundador da primeira revista de arte contemporânea do continente africano e mais ainda, curador da 2a. Bienal de Johannesburg, em 1997.
São dados de um considerável currículo, para uma bienal onde um alto percentual de artistas, muitos dos quais são desconhecidos, são africanos ou afro-americanos, prontos a colocar à mesa as problemáticas derivadas de sua própria identidade.
Uma bienal que reconhece a presença de artistas negros que se confrontam com a cena da arte planetária como primeiros protagonistas de um evento dos mais aclamados pela crítica e pelo mercado, num espaço construído para colocar suas demandas mais fortes e possíveis eficácias, chegando a desordenar a estruturalmente a manifestação com a colocação da Arena, um local performático e dinâmico, com objetivo de tornar a mostra dinâmica e atual.
Uma observação que vemos no Pavilhão Central dos Jardins como um espaço mais meditativo e programático. Um ato de escuta ( não é à toa que a Arena ocupa o espaço central), com uma forte presença de obras emblemáticas de artistas históricos ( Mauri, Boltanski, Smithson, Evans, Piper), quase como querer sublinhar a moldura cultural de toda a mostra de incrível intensidade como The Vertigo Sea, o vídeo do ganense John Akomfrah: uma imersão nas águas do mar do mundo, ameaçada por todos os tipos de problemas, numa linguagem clara e direta de notável poesia.
Ao contrário, no Arsenal, o lugar é mais oprimido, quase claustrofóbico, onde se apodera das instância do corpo hoje de maneira forte e dramática: um labirinto onde se acumulam os futuros do mundo semelhantes a uma cela suja de um cárcere, onde também as pessoas devem mover-se com extrema atenção para evitar cair como vítima de milhares de perigos.
Um pesadelo anuncia já ao externo da instalação de Ibrahim Mahama, que recobre de sacos no corredor externo da Corderie, rebatida com a instalação de Adel Abdessemed, com as facas plantadas sobre o chão a contrapor as flores cortantes, iluminadas pela gélida luz de neon de Bruce Nauman.
Em um percurso expositivo dominado pela sombra, separam os acúmulos de serras elétricas negras de Monica Bonvicini junto com as esculturas de Terry Atkins, artista afroamericano morto recentemente, ignorado em vida e celebrado depois de morto. Memorável o duplo vídeo de Steve MacQueen Ashes, jogando com o equilíbrio entre a vida e a morte, beleza e esquecimento, que podemos elevar a um símbolo de mostra que subtrai o olhares e juízos superficiais e pede para ser vista e revista muitas vezes para colher a essência, também porque Todos os Futuros do Mundo parece se voltar à nós, mas se configura como um projeto articulado e ideologicamente sustentado por um status determinado pela vontade de um exprimir de uma raça inteira, por muito tempo marginalizada não somente do mundo cultural.
Armados de muita humildade, antes julgá-la devemos ouvir as instâncias, sem se impressionar de ser o centro de um mundo que não é tranquilizador, onde a complexidade parece transformar a alma de um tempo onde é mais fácil voltar atrás. A arte permanece como poucas bússolas ainda funcionando, mesmo que quando aponte algo seja até ao inferno.
Paola Tognon. Desfolhei um amplo volume
Paola Tognon é critica e historiada de arte italiana. Trabalha com jovens na execução de projetos e redes culturais e fundadora de diversas associações ligadas à arte.
A lenta recuperação da maratona de abertura da 56a. Bienal de Arte de Veneza: ainda não terminei o processo de digestão e elaboração, colocando em destaque a reflexão, que permite voltar sobre as coisas com a devida distância e retirar disso o resultado. Mas já sutil e persistente perceber o alarme em torno da mostra de Okwui Enwezor, curador desta Bienal que melhor recordo como curador de Kassel.
Que coisa a mim permanece hoje nesta mostra?
Uma sensação de confusão de seus objetivos , sobre teses colocadas e implantadas através de três capítulos de reflexão e trabalhos relacionados, sobre a escolha específica de obras antes dos artistas e na forma de propor. Tenho pouca clareza sobre o crédito de tudo isso, em um fluir de visões e reflexões que não acha parâmetros para pelo objetivo declarado: demonstra uma diversidade das práticas. E, certamente, o mesmo ponto de partida das duas exposições, no local do Corderie como no Pavilhão Central do Giardini não me ajudou: a estrita divisão do espaço, às vezes até punitiva como le Corderie, que certamente facilitou os processos de relação e contraposição entre as práticas artísticas. Poucos relacionamentos, algumas lutas, poucas em simbiose.
Posso sintetizar descrevendo a falta de um trabalho curatorial capaz de envolver obras e visitantes em um fluir também contraditório das teses e experiências.
Acrescento porém, sem querer aqui entrar no mérito das obras e artistas individualmente, algumas considerações positivas. Pela primeira vez senti a África mais vizinha e menos demonstrações neo-coloniais, menos exótica e legal e de qualquer modo felizmente ordinária na sua vasta e desconhecida complexidade. Registrei a eficácia do dispositivo da Platea situada ao centro do Pavilhão Centra dos Jardins, e parabenizo pela solicitação inteligente e pontual da releitura de Karl Marx. Reuni muitas informações nas últimas edições da Bienal de Arte. Vi os belos trabalhos, encontrei presenças de inter-gerações veladas numa arguta liberdade crítica, gozei da sobriedade do colocar em cena, gastei meu tempo muitas horas sentada em frente de longos vídeos e curta-metragens.
Hoje posso dizer que li um amplo volume, interessante do ponto de vista da heterogeneidade e da novidade de muitas propostas, interessante pelos muitos insights críticos e observações, mas sinto falta de ter participado de uma inauguração que se propôs a difundir ideias, propostas e energia.
Raffaele Gavarro. Cansativa e dialética
Raffaele Gavarro é escritor e curador. Hoje professor de História e Teoria e Novas Mídias da Academia de Finas Artes em Roma.
Uma expressão que usei frequentemente nos dias sucessivos à abertura da Bienal, quando me pediam uma opinião sobre a mostra e do curador, foi: cansativa. Não é juízo negativo, mas somente uma constatação de uma fluidez que não é fluida, que escorre, desta mostra a respeito dos precedentes e isto sobretudo ao Arsenale. A Bienal é uma mostra difícil, talvez a mais difícil de todas. Não saberia dizer se é a mais importante, mas certamente é aquela que representa as maiores ações dissimuladas, dividida entre a mostra principal, os pavilhões nacionais e colaterais, o todo a formar em qualquer maneira uma unidade no imaginário do público, para formar um julgamento quase nunca único.
A este proposito um outro adjetivo que usei foi: dialética. E não somente motivado, embora atraído pela reflexão proposta sobre o pensamento de Karl Marx, o que para dizer melhor sobre o precedente método di Hegel hegeliano transformado depois materialista, muito próprio pela internacionalidade do curador de construir espaços expositivos e mentais de confronto, sem querer oferecer soluções, mas buscando de dar um sentido às perguntas que assinalam os nossos tempos atuais.
Cansativa e dialética e, então, com muitas contradições.
Okwui Enwezor afirma, entre outras coisas, no texto de introdução, que a arte não tem obrigações e pode optar em não envolver-se em conteúdos sociais e políticos. Justo. Mas disse também que uma mostra ao contrário, não pode eximir-se de considerar o próprio conteúdo cultural, restituindo uma visão. Eu não sou seguro que as duas coisas são separáveis, pelo menos não consigo ver um modo, a menos que não se pense que o curador deva, ou possa desdobrar o significado das obras a sua própria ideia preconcebida.
Na verdade, são poucas obras expostas que não exprimem uma problemática do contexto atual, incluindo as opções de artistas que não estão mais vivos. Contradições surgem mais de uma descontinuidade qualitativa dos trabalhos selecionados, mas, no entanto, e talvez acima de tudo, pela rendição inevitável que neste momento da história é a antítese de um papel crítico de arte no confronto dos poderes, e isso é sistema internacional de arte, que é um parente próximo do sistema financeiro global que se tornou o capitalismo. Não é essa aproximação global da arte com capitalismo que está causando a sua ruína?