As obras são inspiradoras e algumas incríveis como Irokó, a Árvore Cósmica, da artista baiana Nadia Taquary, na 36ª Bienal de São Paulo. São obras e instalações contemporâneas que se afirmam como uma escuta sensível do mundo, numa Bienal que se inspirou num poema da escritora Conceição Evaristo.
Escolhi Iorokó, a Árvore Cósmica, como ilustração destaque, por ser uma instalação de uma beleza estética impactante e por nos remeter ao título da Bienal- Nem todo o viandante anda estradas- Da humanidade como prática (aqui).
Confesso que tenho algumas críticas sobre a Bienal em si. O QRcode, sistema digital para informações das obras e artistas quebra a magia do observador ao consultar e fazer todo o processo. A identificação escrita era mais fácil. Os textos nas colunas são imensos e pouco didáticos na colocação. E as obras com som e ruídos perdiam-se num mix ensurdecedor de tudo junto misturado. Talvez reflita a diversidade de um mundo.
Mas uma Bienal é sempre um evento apoteótico e eu sou uma observadora empolgada ao visitá-la e viajar na poética artística que envolve artistas do mundo inteiro. Nesta Bienal de São Paulo, o tema desloca o olhar da ideia de percurso físico para trajetórias subjetivas, simbólicas e históricas.
Inspirar-se em Conceição Evaristo é uma iniciativa sábia. A escritora brasileira trata em sua escrita da história da escravidão e suas marcas, do racismo, das mulheres negras e coloca em seu texto as marcas da oralidade. ” A nossa “escrevivência” não é pra adormecer os da casa grande, e sim para acordá-los de seus sonhos injustos.”
O viandante, aqui, não é apenas quem se desloca no espaço, mas quem atravessa estados de existência, conflitos sociais, memórias ancestrais e formas diversas de pertencimento.
A Árvore Cósmica evoca o conhecimento ancestral pelo ciclo da vida. A gameleira foi a primeira árvore plantada e, segundo a tradição, foi por ela que os orixás desceram à Terra, e sobre ela pousaram as feiticeiras Ìyámis.
Ìrókó, orixá senhor do tempo e da ancestralidade, passou a ser cultuado no Brasil por meio da gameleira – árvore presente nos terreiros de religiões de matriz africana, sinalizada por uma bandeira branca. Ìrókó é o antídoto para os males, a calma após a tempestade, a inevitabilidade da vida.
AÁrvore Cósmica é viandante no tempo subjetivo, a caminhante, que simboliza a cultura de um povo e traz com ela toda a simbologia de crenças e conhecimento ancestral.
Da mesma forma a artista marroquina Amina Agueznay, que em Vista de Talisman of Henna – Variation #1 e #2, desenvolve uma prática artística profundamente enraizada no saber artesanal e nas histórias humanas.
Seu trabalho parte de uma abordagem de campo que privilegia a imersão, a troca e o compartilhamento de habilidades com artesãos de diversas regiões do Marrocos.
Cada instalação e cada objeto encarnam um equilíbrio delicado entre o respeito pelo legado técnico (ou conhecimento ancestral) e sua reinvenção dentro do contexto contemporâneo.
Myriam Omar Awadi (1983, Paris. Vive em Le Tampon, Reunião) é artista franco-comorense. Sua obra dá voz a narrativas muitas vezes inaudíveis, buscando as centelhas reacendidas por seus últimos suspiros. Milhões de almas e espécies, moldadas em madeira, argila, vidro, bordado, lantejoulas cintilantes e água do mar gotejam sobre microfones e despertam de suas extinções premeditadas pelo suor de nossa escuta desviante. Elas contam histórias para jardins, embalam o suprematismo mórbido e cantam uma política dissolvida nos humores líquidos do amor. Fonte Bienal de São Paulo.
Esses tecidos formam um terreno visual e sônico que oscila entre a ocultação e a revelação. Suspenso dentro de um arranjo de microfones e alto-falantes em forma de árvores – evocando as raízes emaranhadas dos manguezais –, o tecido pende dos galhos oscilantes dessas formas invisíveis. A instalação escultural e sônica evoca a epifania de uma floresta de mangue, com todas as esculturas feitas de madeira. Com base no Debe, uma tradição ritual das ilhas Comores liderada por mulheres, Omar Awadi invoca o bordado não apenas como adorno, mas como uma forma de pontuação – uma maneira de manter o que não pode ser dito.
As obras de Ruth Ige falam sobre o tempo como testemunho. A série Pois o tempo é testemunha da humanidade, utiliza tinta acrílica, espirulina azul, argila brasileira, folhas secas de ugu, sobre tela.
Suas figuras, encapuzadas e sem rosto, não se oferecem ao reconhecimento. Elas permanecem contidas, míticas, suavemente monumentais. O que emerge não é um retrato, mas uma presença – uma forma de ser que detém seu próprio poder.
O azul intenso reflete o infinito, um espaço, a memória. Suas telas operam como estuários antropológicos, contendo heranças ecológicas, espirituais e ancestrais em seu próprio pigmento. As pinturas assumem uma qualidade lenta e sedimentar – como se fossem formadas ao longo do tempo, em vez de feitas de uma só vez.
As obras reunidas não falam em uníssono, mas formam um coro dissonante que reflete um mundo fragmentado, marcado por deslocamentos forçados, crises ambientais, disputas de narrativas, apagamentos históricos e, ao mesmo tempo, pela persistência de saberes tradicionais, espiritualidades e formas de resistência.
Ao propor que nem todo viandante anda estradas, a Bienal reconhece trajetórias invisíveis: caminhos que não aparecem nos mapas oficiais, mas que atravessam corpos, culturas e tempos.
Caminhos de povos originários, de diásporas, de mulheres, de comunidades marginalizadas, de sujeitos que reinventam a humanidade a partir das bordas. A prática da humanidade, portanto, não é neutra nem universal; ela é situada, plural e profundamente política.
Como voz poética de seu tempo, a Bienal de São Paulo não busca ilustrar a realidade, mas tensioná-la. Assim, a Bienal reafirma seu papel fundamental: ser um espaço onde a arte não apenas representa o mundo, mas participa ativamente de sua reinvenção, afirmando que a humanidade, antes de ser uma condição, é um exercício contínuo. Fontes: IA e Bienal de São Paulo.




