A rosa meditativa - Salvador Dalí, 1958

Yeats Society Madrid – a forma mais terna de dizer “eu te amo”

Em 14 de fevereiro celebramos o dia dos namorados na Europa. A data parece piegas, bregas e de certa forma de mal gosto. Muita gente se pergunta, mas é necessário um dia para celebrar o dia dos namorados? Às vezes eu também pergunto, se não houvesse esse dia, quantos casais encontrariam um para celebrar.

Discussões à parte eu o celebrei…ainda que de forma diferente e em companhia de muitos. Celebrei o dia com o Yeats Society Madrid. E é por isso que estou aqui hoje, para contar sobre essa peculiar velada do dia 14 de fevereiro.

Mas antes de entrar no miolo do tema, gostaria de dar algumas referências para que a gente entenda como fui parar ali.

Epilogo

Para aqueles que não sabem, faço parte de um grupo de escritura criativa já faz cinco anos. Começamos o curso na “Escuela de Escritores” no centro de Madrid e uma ano depois nos tornamos independente dela, fundamos nosso grupo, batizado de “Uruguayos”, já que começamos a encontrar-nos na casa de um colega que vive numa rua chamada “Uruguay”. Coincidentemente, fui morar bem na esquina dele (calle Puerto Rico) onde nos encontramos para debater sobre nossos relatos, ensaios, contos e novelas. Parece meio pretensioso, mas sempre quis fazer parte de algo parecido…

O caso é que nosso professor, Cary (americano – esqueci de dizer que nosso grupo era de escritura criativa em inglês, pelo menos nas origens), nos convidou para ir no dia 14 de fevereiro a ver-lhe junto com outros membros da “Yeats Society” a uma velada de San Valentin, com direito a música e poesia. E eis que aceitamos o convite, principalmente porque ele ia fazer tributo a sua falecida esposa Maria, que todos a conhecemos e temos muito carinho por ela.

14 de fevereiro

Sim, na última hora tivemos algumas baixas de uma amiga lituana que tinha febre e o namorado de Israel. Mas no fim, até que estivemos em peso ali.

Tínhamos que chegar as 7h30, porque o evento começava as 8. Olhei o endereço e pensei… “Mmmm, bairro nobre de Madrid”. Me encontraria com Delia, uma amiga do grupo, as 7h 30 na porta junto com o meu namorado que também escreve poesia e como não entende uma palavra de espanhol tava feliz de ir um evento em inglês.

Caminhamos várias quadras em busca do número 43. Imaginava um bar, um salão de festas, qualquer coisa que indicasse um evento dentro. E quando finalmente encontramos o tão querido número apenas víamos uma portinha de madeira que dava ao interior de uma igreja. Pensei com os meus botões: “será esse o lugar?”…

Olhei com uma cara de interrogação ao meu namorado que não entendia também nada. Mas diante da porta estava Delia, prova irrefutável que o lugar era esse. Cumprimentei-a e enquanto comentávamos sobre o lugar começou a aparecer mais gente na porta: Esses casais, vestido de terno, mulheres de vestido, todos muito elegantes, com uma idade media de 70 anos batendo na bendita porta. Quase falei detrás “abra de Sésamo”, mas duvidei por um minuto que fossem entender a minha ironia.

Delia me olhou, e ao namorado também e disse, entramos. Pensei comigo, “e se entro e não saio mais”? “Vai saber o que eles fazem ali dentro… só conseguia pensar nos cultos intermináveis que experimentei a curta idade, e na minha mente criativa pensava em salas com câmeras de gás preparadas para exterminar velhinhos, ou toda uma organização criminosa que utilizava as dependências da igreja para lavar dinheiro, ou traficar com medicinas inacessíveis aqui na Espanha (fato impossível de ser verdade já que aqui ninguém tem problema de falta de medicamento, pelo menos até agora).

Yeats Society

Enfim dei um passo para dentro e pensei que se já tinha chegado tão longe, não ia amarelar agora. Que podia passar dentro de uma igreja no centro de Madrid, com um bando de americanos ancestrais, em um clã chamado “Yeats Socielty”?

Cruzamos o jardim interior e entramos em outra sala. Esta já representativa sobre o que íamos a encontrar essa noite. Nada mais cruzar a porta da sala onde era a reunião vemos um senhor do mais peculiar tocando o piano. Imagina um desses personagens que saem de um livro de Hemingway, um inglês com terno xadrez, gravata borboleta, sapatos marrons de cano alto onde se via seu par de meias vermelhas de algodão com desenhinhos infantis. Sua cara do mais expressiva adornada com uns óculos vintage, e enquanto todos nos organizávamos, esse tocava.

Dei um passo mais adentro e vi com meus próprios olhos do que se tratava: um encontro artístico da terceira idade. Exato! Não era um baile da terceira idade, nem essas reuniões de chá que sempre me parecem um pé no saco. Ali todos pareciam muito metidos no mundo das artes de das ciências e se não eram, disfarçavam muito bem… todos vestidos com seus ternos, com a sua cara de inteligentes, bilíngues, trilíngues, e conhecedor profundo da poesia de Yeats.

É meus amigos, acabava de descobrir que Yeats era um poeta e e eu não tinha a menor ideia. Ou seja, entre inteligentes e os que dissimulavam, eu entrava mais bem numa terceira categoria: no grupo dos ignorantes completos, que nem a cara nem a vestimenta me outorgavam valor para estar ali. Mas enfim, estava com minha amiga Delia que não dá a menor importância para estas coisas e com o namorado, que estava feliz de falar qualquer coisa que não fosse espanhol.

Segurei a respiração e fui até o fim. Já que estamos aqui vamos a culturalizar-nos, pensei. Entre um poema, e outro, comecei a ver tudo com outros olhos. Entre uma performance, uma canção, um verso, já me sentia parte integrante dali. Sim, me estavam corrompendo… e eu estava gostando. Escutamos vários poemas de amor, algumas histórias lidas em voz alta, algumas músicas de Paul Macartney, todos cantando juntos, em uma só voz. Sim era uma delícia. Era como se, por um segundo, já não queria ter mais 34, e transportar-me a sua geração com 30 anos mais e viver aquilo que eles viveram.

Sempre pensei que o cinema era uma das artes mais democráticas da história, já que independente da idade, do credo, e das condições sociais, era capaz de unir todos numa sala e passar os mesmos tipos de sentimento. Hoje vejo que a poesia, a música, tem o mesmo poder. Não fui abduzida, nem roubaram meu rim…, mas me fizeram emocionar-me com vários poemas, com vários versos, e com muitas canções.

THE CHOICE

The intellect of man is forced to choose

Perfection of  the life, or of the work,

And if it take the second must refuse

A heavenly mansion, raging in the dark.

When all that story’s finished, what’s the news?

In luck or out the toil has left its mark:

That old perplexity an empty purse,

Or the day’s vanity, the night’s remorse.

 

E “la creme de la creme”, como sempre ficou para o final. Eram os poemas de Cary a Maria. Maria sofreu de um câncer terminal. Quando começamos as aulas de escritura, o seu câncer apareceu e lhe deram dois meses de vida. Afortunadamente a enfermidade foi mais doce e alargou a sua vida por 4 anos e meio, dando tempo de ver seu filho formar-se e assim, despedir-se de todos com tempo.

Cary, conta, declama, ainda com a dor que se enxerga na janela dos seus olhos, depois de 18 meses de luto, como foi esse processo, como lhe amou, como notou em cada detalhe que em cada dia que passava, os dias já não somavam… senão restavam da sua vida juntos; e, nos versos que escutamos, que choramos e que sentimos, vimos na sutileza das suas palavras a forma mais terna de dizer “Eu te amo”.

Quem dera, na nossa sociedade, nos países, no mundo, houvesse mais Yeats Society, ou grupos como “Los uruguayos” o qual tenho o privilégio de fazer parte. Estamos juntos com o único fim de juntar nossa paixão pela escrita, pela literatura, pelas artes, pela poesia e aproveitar para compartir esse momento juntos.

A beleza da vida só é admirada por aqueles que tem a sensibilidade de senti-la. Não precisa ser através das artes, mas sem dúvida, as artes, no seu sentido mais amplo, unem pessoas.

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