Quem trabalhou na penitenciária passou por pelos menos uma rebelião
A minha foi em 1989, quando eu era dentista e batalhava lá no fundão. Onze presos se rebelaram e fizeram reféns, além de toda a parte administrativa, também, os agentes de segurança que ficaram amarrados lá na frente e perto da porta de saída. A elite, diretor e vice ficaram sob a vigilância dos bandidos na parte superior do edifício. Meu anjo da guarda estava de plantão e eu faltei naquele dia. É que um guarda de trânsito me parou e segurou o tempo suficiente para que eu perdesse o ônibus. Naquele dia, tanto o diretor como o vice foram degolados parcialmente, mas atendidos na hora da invasão, sobreviveram.
Luiz Ernesto Wanke
Na época escrevi toda esta história e o trecho abaixo foram retirados desses originais: O ÍCARO DOIDÃO
O preso Broca cuidava dos materiais da marcenaria e como responsável pela chave dos armários não teve dúvidas: na hora da liberdade, abriu-os e retirou as duas ladas de cola de marceneiro. Uma delas negociou com os amigos para que vendessem pelo pátio. A outra reservou para si.
Cheirou adoidado até cair e no delírio imaginou-se como um Ícaro voando por cima dos muros da prisão, rumo a tão sonhada liberdade. Doidão, subiu no segundo andar do prédio da penitenciária e jogou-se batendo os braços tal como um albatroz plainando no céu. Mas não deu outra: espatifou-se no chão calçado com paralelepípedos.
Voo doido
Embora o baque fosse terrível, o infeliz não morreu. Inconsciente, foi carregado para a enfermaria por ordem do chefe da rebelião, um cara apelidado de Polaco.
Na enfermaria estava o Carvão, um preso metido a enfermeiro, médico e até, dentista, isto é, era um substituto raro, um ‘quebra galhos’ para qualquer emergência. Sua primeira providência foi mandar chamar o enfermeiro de plantão que estava amarrado lá na frente.
Como a chefia da rebelião – o Polaco – não concordou, teve que se virar sozinho. Improvisou algumas talas, já que o infeliz tinha caído de pé e estava com os membros inferiores estraçalhados. Tinha fraturas nas duas pernas e nos braços, sangrava pela boca, ouvidos e nariz.
Sua boca também estava travada e com o ventre aberto por causa de um ferimento causado pelo estoque que carregava na cintura. Preocupado com seu estado, o Carvão lembrou-se que o médico estaria de plantão atendendo a Penitenciária Feminina, que não estava em rebelião e ficava na frente do prédio dos homens.
Depois de muita insistência, conseguiu falar com a telefonista interna, ocupada com as negociações entre rebelados e autoridades. – Como estão as fraturas? Perguntou-lhe o médico.
– Aparentemente está todo quebrado, por fora e por dentro, respondeu-lhe o Carvão. O fêmur da perna esquerda, além de moído está exposto. Amarrei tudo com umas talas feitas com pedaços de compensado que achei por aí. Orientado pelo doutor, o Carvão terminou sua obra prima costurando todas as partes abertas dos ferimentos, aplicou-lhe uma injeção de benzetacil e outra, anti-hemorrágica.
Salvou a vida
Com estas providências, salvou a vida do infeliz. Exausto, puxou uma cadeira para o lado do colega inconsciente, preparou um baseado e finalmente teve a tranquilidade de dar as primeiras baforadas do dia. Olhou o rosto sofrido do infeliz e viu que ele arfava penosamente.
Aí teve a ideia estratégica de lançar sobre as narinas do Ícaro fracassado, baforadas de fumaça da maldita, porque pensou:
“Se o infeliz tiver que morrer, que pelo menos morra feliz.”