Por Luiz Ernesto Wanke ( Quem trabalhou na penitenciária deve ter passado pelo menos por uma rebelião. Fui dentista lá por dez anos e quase fui pego como refém na rebelião de 1989. Naquele dia Deus me fez atrasar e perder o ônibus para a pinita e, em consequência, acabei faltando. Na ocasião morreram onze internos e um agente penitenciário, inclusive o protagonista deste relato. Tanto o diretor como o vice foram degolados parcialmente pelos bandidos, mas acudidos, sobreviveram. Este texto é o relato inicial de um livro inédito sobre aquela rebelião.)
Na hora do almoço o guarda Pedro atravessou apressado a pracinha interna que divide o prédio da administração com os da detenção propriamente dita. Subiu os dois primeiros degraus da escada externa que dá acesso ao presídio e, por sorte, empacou ali, encasquetado com a porta principal fechada. Não era comum. Dali fixou os olhos nos vidros e viu lá dentro um preso agarrando numa ‘gravata’ o diretor e com o outro segurando a metade de uma tesoura dançando no ar. Atrás deles, um tumulto com muitos gritos desesperados.
Aí apareceu, ainda por trás do vidro, um bandido gritando:
“- Venha!”
Era para ele. Assustado, deu meia volta e saiu correndo desesperadamente em direção ao prédio da administração, gritando:
“- A cadeia caiu! Soltem o ‘berro da vaca’!”
(O ‘berro da vaca’ é uma sirene disparada exclusivamente para denunciar a ocorrência de uma rebelião).
O cantador Osni, também um preso, mais tarde descreveu numa música este preâmbulo:
“Vou contar uma história triste
Que no Paraná aconteceu
Foi na cadeia de Piraquara
A ocorrência que se deu
No dia 13 de novembro
Jamais alguém esqueceu
Pelo derramamento de sangue
E pelos onze que morreu.”
A TOMADA DO INFERNO
Doze presos, todos do setor de costura de bolas de futebol e com penas intermináveis nas costas, tinham atravessado três barreiras com guardas, na desculpa de que foram mandados pela segurança para a ‘salinha’, uma espécie de tribunal interno onde os presos são julgados por seus delitos dentro da cadeia.
Aproveitando-se do marasmo da hora do almoço, conseguiram chegar à Inspetoria, que fica junto à entrada principal da penitenciária. Surpreenderam os guardas da portaria armados com uma meia tesoura da alfaiataria e tomaram a única arma do presídio, um 38 carregado com três balas. Imobilizaram o diretor que estava almoçando no refeitório, junto com sua equipe formada pelo vice, três assistentes sociais e uma psicóloga.
De posse dos reféns fizeram um arrastão em toda a penitenciária, trazendo os guardas para frente dominada. A elite, formada pelo diretor e equipe, foram levados para uma sala no andar de cima e todos os outros amarrados com um cordão de costurar bola (grosso barbante encerado), formando duas alas com vinte elementos cada uma. Contando com a turma do diretor, mais guardas e funcionários, estavam nas mãos dos bandidos, 51 reféns.
O chefe dos amotinados era um preso perigoso de apelido ‘Polaquinho de Osasco’, com pena de prisão para o resto de sua vida e que agora estava dando sua cartada final de vida ou morte.
Finalmente chegara à cadeia o temido dia do ‘juízo final’ para toda a comunidade. É nesta hora que se resolvem os acertos de ódio entre os presos e se pratica o esporte preferido: cavar túneis.
Mas esta tentativa de fuga era feita apenas para os amotinados e o resto dos presos precisavam saber disto. Com a cadeia ‘na mão’ Polaquinho foi fazer o papel de Deus. Voltou ao pátio do Pinheirinho (que tem um pinheiro no centro) comunicar aos colegas presos sua condição de ‘dono do pedaço’, fazendo questão de ser chamado de ‘diretor’, e incluindo novas responsabilidades que o cargo lhe conferia. É uma postura tradicional que já acontecera muitas vezes.
No pátio, Polaco fez um inflamado discurso explicando a intenção de seu grupo deixando claro que não caberia mais ninguém na fuga. Depois exigiu disciplina e por fim, mandou todos para a cela, cândidos e comportados como surubins.
O cantador Osni confirma:
“Era meio dia e vinte
Quando a notícia corria
Que naquela penitenciária
Os internos invadia
Os cabeças gritavam com a tensão
Tomamos a cadeia da segurança
Temos na direção
Não queremos briga no pátio.”
Quando saiu, Polaco foi ovacionado como herói pelos demais detentos. Exercendo sua autoridade, fechou o cadeado do portão principal, separando o Paraíso, com 1.200 internos (porque agora tudo podiam claro, menos a liberdade) do Inferno (com os rebelados de futuro incerto).
Ao voltar pelo corredor Polaquinho ainda ouviu de um preso moreninho e admirador, que espremeu a cara num vão das grades do portão fechado, gritando:
“- Sejam felizes na fuga!”
Polaco parou de supetão no meio do corredor da galeria, virou-se e respondeu brabo:
“- Felizes um caralho!”