sabugo

O Sabugo

 

Penso que fui professor (hoje aposentado) por vocação. Nesta profissão, além de transmitir os conteúdos procurei sempre ter a melhor relação com meus alunos, geralmente os adolescentes de nível médio. Mas quando hoje me contam causos daqueles tempos fico arrepiado, já que – me parece – essa relação mudou e os professores de hoje em dia precisam tratar seus alunos com a máxima diplomacia. Se derem uma ‘escorregadela’ são alvos de reclamações e às vezes, até agressões. Mas como nem tudo é perfeito, este ‘causo’ é de uma ocasião que me dei mal.

Era professor de ensino médio acostumado a lidar com adolescentes. Por isso, fiquei desapontado quando a diretora do novo colégio que eu tinha sido nomeado entregou-me uma turma de crianças de quinta série, todas acostumadas a rodearem a professorinha e a chamarem de tia. Mas como eu era novo na escola, tive que me vestir de humildade e aceitar sem pestanejar a função.

Decorridos mais ou menos dois meses de aulas, a zelosa diretora convocou uma reunião de pais e professores para estabelecer as normas da escola e algumas mudanças para o restante do ano letivo.

Era um sábado. Chateado com a obrigação cheguei atrasado e coloquei-me lá no fundão do auditório, de pé porque naquela altura todas as cadeiras estavam ocupadas. Lá na frente a chefia discorria sobre itens comuns como a necessária disciplina dos alunos, pedindo o devido apoio para os pais. Eis que no meio da monotonia, levanta-se um senhor pedindo para falar. Enquanto a diretora esperava curiosa, ele desabafa:

“ – Senhora diretora, que absurdo! Tenho que fazer um denúncia grave: um professor chamou meu filho de ‘sabugo’!

Quase cai sentado. A palavra ‘sabugo’ varou a sala como uma flecha me atingindo no coração. Esta era minha expressão favorita quando brincava com meus alunos adolescentes, com os colegas professores e até usava-a comigo mesmo. Mais ou menos assim: quando os alunos me pediam algo fora do meu alcance, dizia, ‘Não posso fazer porque sou sabugo’ (subordinado).

Com a reclamação do pai, toda a sala me pareceu escura. E eu devo ter ficado vermelho ou a cor que valha. Que vergonha! Constrangido, olhei com o rabo dos olhos e lá estavam os colegas com os rostos virados no meu sentido. Todos continham seus risinhos cínicos!

A diretora tomou as dores do pai. Indignada gritou aos quatro ventos:

“– Sempre oriento meus professores para respeitarem nossas crianças!”

Com os olhos fixos nos tacos do chão vi um vão entre duas peças mal colocadas. Desejei me enfiar naquele espaço mínimo.

O tempo parou. A diretora aproveitou para engatar um sermão geral:

“ – Por estarem em formação é que temos que ter todo o cuidado com que falamos. Devemos tratar nossos alunos de maneira digna!”

E ainda arriscou uma ‘pérola’:

“ – Não somos nós, adultos, os espelhos das crianças?”

Assim por diante. A diretora deixou a marcha na banguela e falava, falava… Seu discurso não tinha fim.

Finalmente fui me recompondo. Por instinto de autopreservação procurei dentro do mim alguma coisa que pudesse – pelo menos – minimizar minha falha. Afinal, se os pirralhões podiam me chamar indevidamente de ‘tio’ porque eu não teria direito de nomeá-los com uma expressão jocosa?

Remoendo-me por dentro procurei na memória a origem do fato e lembrei-me que sim, tinha pedido delicadamente a um aluno ‘Sabugo, por favor, me mostre seu exercício!”

Levantei os olhos e a diretora continuava sua ladainha. Quem sabe não seria uma boa ir lá na frente pedir desculpas ao pai ofendido? Não, meus pés ficaram colados no chão!

Fui um covardão e fiquei calado até o final do blá blá blá da diretora. Quando finalmente ela terminou seu longo ‘sabão’, respirei aliviado. Mais ainda quando o assunto virou para a necessidade da escola exigir os uniformes obrigatórios… Suspirei, seria a luz voltando naquele salão?

Não, porque o tal pai estava indignado e continuava a reclamar aos brados com seus vizinhos de cadeira!

Até que na terceira fila, uma mulher se levantou e pediu a palavra:

“- Senhora diretora, assim não pode! A senhora fica se esgoelando aí na frente, mas o ‘pai do sabugo’ não presta a atenção nas suas ordens, fica falando a toa e ainda atrapalha o nosso entendimento!”

(do livro inédito, ‘Pobrete mas alegrete’)

Pós ‘causo’:

Através do Facebook hoje em dia tenho contato com meus ex-alunos e deles tenho recebido um retorno positivo deste estranho convívio escolar. Cada um tem uma história para contar daqueles tempos, como o dia que cumprimentei todos pelo dia das mães, ou que ‘eu dava aulas no corredor da escola’ ou ainda – neste caso negativamente – quando chamei um pirralho de ‘peixe’, no sentido de protegido. Ele explicou-me que por isto foi alvo de brincadeiras dos colegas e sofreu. Mas, mesmo assim, não sei se me arrependo e muito menos, se hoje faria diferente.

Um dos últimos que conversei contou-me que numa determinada aula ele pediu licença, levantou-se e disse que não tinha entendido o assunto. Então eu o respondi mais ou menos assim:

– Não diga deste jeito. Você tem que fazer uma cara de ignorante, babar, largar o lápis na carteira e pedir distorcendo a voz: ‘me pega na mão que eu não chei fazer!’

Graças a Deus ele também disse que depois de toda a classe rir conosco eu fui lá e o ajudei.

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