Scan (1)

A ‘alma’ das coisas

Scan (1)

Por Luiz Ernesto Wanke  –

“ Zélia, o Boris não quer morrer!”

“- Danado!”

Foi o pequeno diálogo que um jornalista ouviu, enquanto o  casal de escritores, Zélia Gatai e Jorge Amado trabalhavam numa sala ao lado. Na ocasião, ele esperava sua vez para uma entrevista com o casal.

Jorge  Amado sempre disse que seus personagens dialogavam com ele e isto eu mesmo descobri quando arrisquei escrever ficção. A partir de certo momento, a história ganha ‘alma’ e passa a controlar o desenrolar da ação. Com personalidade, aceita apenas o que ela quer.

Interessante que para o leitor este mecanismo se repete. Quantas vezes abandonamos a leitura de um livro porque não nos tocou? Há que ter uma cumplicidade solidária com a história e acima de tudo, que ela tenha uma ‘alma’ viva. É como uma fagulha que acende o interesse do leitor… Como conseguir isto?

Pois com todos os recursos modernos, incluindo o corretivo automático, hoje em dia não é tão difícil escrever, muito menos uma história. Mas despertar no leitor uma expectativa de maneira que aquele escrito desperte nele a vontade de dialogar com a história, isto sim é uma tarefa ingrata. Somente os melhores sabem.

Hoje em dia isto pode ser testado através das redes sociais. O que se posta muitas vezes é completamente ignorado e outras vezes desperta um rol interminável de comentários. Neste caso, seja o que for, aquela postagem carregou de forma implícita uma ‘alma’.

Quando estudei didática para ser professor, me ensinaram que a base fundamental de uma aula é a motivação dos alunos para que, num segundo momento, eles consigam absorver o conteúdo, a parte chata. Lecionei a vida inteira pensando nisto. Mas hoje constato que os sabidões pedagógicos estavam enganados. O que se deve despertar no aluno é de dentro para fora, ou seja, que este incentivo não seja apenas baseado numa conversa unilateral de quem quer que seja, mas na sutileza de se conseguir induzir nele uma expectativa, de tal maneira que ele passe a participar do assunto mesmo que silenciosamente. Resumidamente, que as aulas também tenham sua ‘alma’.

Na arte não é diferente. Por mais famoso que seja um quadro, ele não tem sentido se não dialogar com o observador. É por isto existem pinturas para todos os gostos. Se não as ‘entendemos’, sigamos em frente, pois sempre haverá quem goste.

Outro dia um dos meus filhos me contou sobre as maravilhas de um dorso de Rodin que ele vira num museu em São Paulo. Para sua sensibilidade, aquela peça não era um bronze frio e estático como parecia, mas um monumento à criatividade de um gênio. Exagero? Não porque ele soube ver e ‘ouvir’ naquele bronze uma beleza em profundidade, já que também é um escultor.

Esta ‘fala’ implícita também pode ser encontrada nos mais variados objetos. Sim, coisas comuns como um sapato velho, agora desprezado, mas que nos levou a tantos saudosos lugares ou ainda pode estar nas marcas de batidas uma velha bigorna, dos tempos que existiam sapateiros e até, como aconteceu com minha sogra, num macaco empalhado que dormiu por muito tempo no sótão da sua casa e assustou algumas gerações de crianças.

Meu velho pai antes de morrer quis viajar do interior para Curitiba somente para andar de pedalhinho no Passeio Público. Seu coração já estava fraco, mal podia pedalar, mas a tudo superou pela vontade de conversar com aquele barquinho. Porque era ele que lhe ‘falava’ de seus tempos felizes da infância e da juventude.

Enfim, se algo está chato e ‘sem sal’ sempre existe a possibilidade de colocar-lhe uma ‘alma’.

 

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