Desde que cheguei na Europa enfrentei uma série de problemas que nunca tinha vivido antes. Me lembro bem desse sentimento de orgulho e medo ao mesmo tempo que vivenciava toda vez que enfrentava algo novo. A língua, a cultura, a distância sem dúvida foram difíceis, mas mais difícil ainda foi lidar com esse turbilhão de sentimentos dentro de mim que não sabia nem como chegava nem como desaparecia.
Eu tinha 20 anos, estava num país novo e ninguém tinha me explicado sobre o inconstante que somos, o vulnerável que podemos ser e sobre a normalidade disso. Não que era obrigação dos outros explicar o que eu me estava deparando, até porque a maioria das pessoas nem mesmo entendem o que se passam com elas.
Mas é certo que o que eu vivi, não em forma de experiência, mas de sentimentos, todo mundo já viveu ou vai viver um dia E como vivemos num mundo que nos cobra ser seres coesos e coerentes, terminamos nunca falando sobre isso e passamos a pensar que somos os únicos que nos sentimos assim.
Um mundo e culturas diferentes
Meus recursos eram escassos. Não tinha dinheiro para ir ao psicólogo e tinha que enfrentar os problemas, um a um, sem procrastinar ou fugir deles. Trabalho, dinheiro, amor, despido, contas… a vida no estrangeiro não tem nada diferente da vida no Brasil. Enfrentamos as mesmas situações a diário, só que num contexto diferente, numa cultura alheia a nossa e com formas de comportamento complexas num primeiro momento.
Foi nessa época que me refugiei nos livros, nem sei bem para que realmente, mas como sempre gostei de ler, vi neles uma forma de ócio barato e saudável. Como meu inglês era fraco, ler em outra língua me proporcionava conhecimento e ferramentas para enfrentar o dia a dia – nessa época, só buscava mais fluidez no idioma, vocabulário e entender bem as estruturas semânticas da língua.
Claro que isso foi só o começo. Quanto mais lia e melhor desenvolvia meu vocabulário, comecei a perceber a importância da literatura em outros contextos: ler os clássicos me proporcionava conhecimentos sobre a cultura que ninguém era capaz de me explicar. Conseguia fazer comparações com os personagens da novela e inseri-los contexto atual. Nossa, o quanto que se aprende sobre as pessoas lendo.
Leitura dos clássicos
É curioso, mas ninguém realmente fala sobre o tempo que você economiza entendendo uma cultura ou certos comportamentos lendo os clássicos de um país. Ou seja, mais que uma ferramenta semântica, a literatura me ajudou a entender culturas, e com isso me deu ideias de como interagir com as pessoas. Os contos de Dickens, Allan Poe, Chekov, as peças de teatro de Beckett, Joe Osborne ou mesmo Harold Pinter me proporcionaram conhecimentos históricos sobre uma época e ao mesmo tempo, conhecimento sobre como as pessoas que são dali.
Além de desfrutar dos contos, era capaz de viver da forma mais intensa a vida de cada um dos personagens. Empatizava com eles e entendia os seus problemas melhores que quando um amigo te conta os seus. Foi assim que comecei também a entender os problemas das pessoas que me rodeavam. Cada um que me contava algum problema, preocupação ou aflição, eu buscava nos livros de forma consciente, a maneira de fazer um paralelo entre a vida do personagem e a dessa pessoa para dar-lhe opções de como enfrentar determinada situação.
Biblioterapia
Tive amigos que já me ligavam diretamente e perguntavam se tinha algumas respostas nos livros que eu lia. Eram sessões de biblioterapia em toda regra.
Mas a empatia não reside somente nos outros, mas também consigo mesmo. Entender-se e empatizar consigo não é fácil mas, sem dúvida, é necessário. Entendi muito sobre meus comportamentos e sentimentos lendo a Milan Kundera, Tolstóis, Clarin, e Machado de Assis.
Milan Kundera
Kundera foi o mais importante deles, deve ser por isso que em dois anos li toda a sua obra. Ainda hoje não fui capaz de encontrar escritor com tamanha dimensão sobre a miséria humana e os comportamentos errôneos que levamos a cabo pelo simples fato de não sermos sinceros conosco.
Um dia, quando falava com um amigo no telefone, lhe disse que estava ajudando a resolver um problema de um amigo e buscava nos livros alguma resposta para o dilema. Ele começou a rir e me disse:
_ Se vive muitas vidas com os livros.
Que razão tinha. Era isso a chave de tudo. Os livros me davam a possibilidade de viver muitas vidas, conhecer muitas histórias e contextos, de ser muitas pessoas diferentes, de ter problemas que nunca tive, vivenciar sentimentos que desconheço e mais do que isso, entender a raça humana em toda sua plenitude e complexidade.
Somos seres diferentes, que pensamos diferentes, atuamos diferente e nos comportamos de formas diferentes. Os livros recorrem todos esses personagens: desde o violador até o ladrão de galinhas, desde o amante apaixonado por duas pessoas diferentes, até a mulher devota, o marido infiel, o filho obediente, o conflitivo, a tia vingativa.
Nos romances, os personagens nunca são lineais. Sua complexidade faz com que sejam reais e possamos ver e neles um espelho das pessoas que temos às nossas voltas, ou nós mesmos.
Faz uns dois anos estive em Londres na The School of life fazendo um curso de Biblioterapia. Esse curso de tratava justamente sobre o que escrevo: sobre como a literatura era capaz de ajudar-nos a entender nossos problemas, nossos sentimentos e como deveríamos utiliza-las para um processo de ajuda e autoconhecimento.
Mundo complexo
Vivemos num mundo complexo, cada vez mais veloz e que nos quitam minutos da nossa vida da forma mais rasteira possível. Entender a nós mesmos, e o nosso entorno é uma tarefa quase impossível nesse mundo hiper-fragmentado e pós-moderno que vivemos.
Ler é uma forma de contra arrestar essa perdida de tempo e fazer com que essas horas diante de um livro se tornem conhecimento intrínseco sobre a melhor forma de viver e de conviver consigo mesmo e com os outros.
Estamos em busca do tempo perdido.