Quem me conhece bem, mas bem mesmo, sabe que eu gosto de me repartir. Entre amigos de todas as partes do mundo, idas e vindas, chegadas e partidas, que fizeram aprender a lidar com a gestão do tempo melhor que muita gente.
Gestiono meu tempo de forma rigorosa, sempre buscando dar o melhor de mim para a pessoa ou a atividade em questão. Sou intensa, e nessa intensidade desejo que as pessoas levem um pedacinho de mim com elas.
Meu prazer em escrever, acho que vem dai. Dessa intensidade da vida que levo com ímpeto em todas as facetas: amor, trabalho, amizade, estudos, o que for. Vivo tão intensamente que tento gravar nesse pedaço de papel, nessa folha que uma hora foi em branco, aquele momento, que de repente se tornou eterno.
Deve ser por isso que tenho diários desde os 7 anos de idade – para bem ou para mal, tive que aprender que certos momentos acabam, mas que se podem eternizar na descrição, na palavra, na poesia que tento transformar o momento em historia.
O contraponto da escrita pra mim é a leitura; que em milhões de escritores diferentes encontro meu pequeno eu dentro da personalidade de um outro. A literatura tem esse poder; de encontrar diversas vozes similares dentro da nossa própria voz… como se nesse instante você fosse entendido pelo gênio que se esconde detrás do livro e ele fosse entendido por milhões de seres humanos que compartem esse pequeno momento com ele.
Eu escrevo com tesão, como já disse no passado. E aquilo que comparto, desejo no mais profundo da minha alma que chegue a cabeça, ao coração ou a alma daqueles que leem, que conversam, que dialogam ou que compartem um momento comigo.
Traduzindo em vozes de outro, ou outra, podemos dizer que:
“Mi oficio es escribir, y yo lo conozco bien y desde hace mucho tiempo. Confío en que no se me entenderá mal: no sé nada sobre el valor de lo que puedo escribir. Sé que escribir es mi oficio. Cuando me pongo a escribir me siento extraordinariamente a gusto y me muevo en un elemento que me parece conocer extraordinariamente bien(…)” – Mi oficio – Natalia Ginzburg
Acho que faz um ano comprei esse livro da Natalia Ginzburg chamado “As Pequenas Virtudes”. Comprei-lo porque já conhecia essa escritora italiana, que me apaixonei de primeira quando numa aula de escritura criativa li o primeiro capitulo do seu outro livro “Léxico Familiar”.
“Léxico familiar” é simplesmente a historia da Natalia, contada através do léxico, do vocabulário e da expressões que marcaram a sua vida e que foram usadas pela sua família, pelo seu entorno. Todos sabemos que cada família tem a sua peculiaridade; e o engraçado desse livro é justamente a peculiaridade da família da Natalia. É relembrando fatos, historias, anedotas, frases e expressões usadas por cada membro da família, que ela recobra vida daqueles que já não estão presentes.
“Somos cinco irmãos. Vivemos em cidades diferentes, alguns de nós no exterior, e não nos escrevemos com frequência. […] Mas basta, entre nós, uma palavra. Basta uma palavra, uma frase: uma daquelas frases antigas, ouvidas e repetidas infinitas vezes, no tempo da nossa infância. […] Uma daquelas frases ou palavras faria que nos reconhecêssemos no escuro de uma gruta, entre milhões de pessoas. Aquelas frases são o nosso latim, o vocabulário dos nossos dias passados, são como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em seus testos, salvos da fúria das águas, da corrosão do tempo”. – Léxico Familiar – Natalia Ginzburg
E essa é a poesia escondida dessa escritora: através das suas experiências, lemos e nos deleitamos compartilhando esse momento único que através da sua voz se torna universal.
“As pequenas virtudes” por outro lado não é uma novela, mas sim um livro de ensaios. Ensaios sobre a sua vida, que traz a tona sentimentos dessa grande mulher que viveu a guerra, o amor, o luto, a maternidade. São ensaios curtos e longos, todos na sua justa medida, capazes de criar empatia com qualquer fase da vida de uma mulher.
O titulo do livro da nome ao seu último ensaio, quem sabe o mais potente de todos, porque aborda a educação dos filhos. É a maternidade e a paternidade juntos, dando forma e conteúdo aos nosso ato mais puro de amor: os nossos filhos.
“No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deva ensinar a eles não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber”. – As pequenas virtudes – Natalia Ginzburg
Natalia foi uma indicação da minha professora maravilhosa de escritura criativa Ana Esteban, que numa das aula havia lido algo dela e me fez mergulhar de cabeça na sua literatura. Viajei a Itália com o seu livro, comprei um segundo livro, chamado “Famílias” e finalmente “As Pequenas Virtudes”.
“Léxico Familiar” e “As pequenas virtudes” me tocaram tanto que copiei excertos do livro e publiquei diariamente no Facebook, tentando compartilhar aquele momento que ficou gravado em mim.
Porque estou contando isso?
Hoje, uma amiga minha de longa data, Manu, me escreveu e me proporcionou um momento de alegria, das mais singelas e ternas que tive. A sua mensagem:
“Oi, não lembro quando. Mas acho que foi você que me indicou esse livro. Faz um tempinho que comprei. Já li e reli os primeiros textos, Mas ainda não cheguei no final. Gosto de deixar aqui no trabalho e me distrair na hora do almoço quando não saio. Tão gostoso ler.”
Junto a mensagem tinha a fotografia do livro, “As pequenas virtudes”. E aí, nesse momento então eu senti: a 9000 km de distancia, a Manu tinha levado um pedacinho de mim.
Como as coincidências não acabam por aqui, entrei no Face e vi que Ana Esteban acabava de publicar outro trecho de um dos textos da Natalia, “Mi oficio”:
“Me había vuelto bastante hábil en el planteamiento de los cuentos, en despojarlos de todo lo inútil, en hacer que los detalles y las conversaciones aparecieran en el momento justo. Escribía cuentos precisos y claros, bien llevados hasta el final, sin torpezas, sin fallos de tono. Pero ocurrió que llegó un momento en que me cansé. Las caras de las personas que encontraba por la calle ya no me decían nada interesante. Estaba cansada de mirar las cosas y a la gente, y de escribirlas mentalmente. El mundo se había callado. No encontraba palabras para describirlo, no tenía palabras que me causaran gran placer. Ya no poseía nada. (…) Llevaba dentro de mí una carga de cosas embalsamadas, de caras mudas, de palabras de ceniza, de países, voces, gestos que no vibraban, que pesaban, muertos, en mi corazón.” – Mi oficio – Natalia Ginzburg
Assim como a Manu levou um pedaço de mim no momento que aceitou a minha indicação, eu levei um pedacinho da minha profe quando me emocionei com a leitura que ela trazia a aula. E lendo a Natalia, também me dediquei a distribuir o seu conto, alguns dos seus ensaios e parte do seu texto a amigos que tenho muito carinho e apreço.
E assim, cada um deles, cada um dos meus amigos, família, amores, vão captando, vão tendo, esse pedacinho de mim. Esse pedacinho que a gente comparte só com quem a gente gosta.
É como se fosse uma corrente do bem – a corrente do bem da literatura. A gente vai passando a diante pra espalhar esses sentimento único vivido quando passamos os olhos nas letras e deciframos parte do enigma da vida.