Desconstrução da pintura O Grito do Ipiranga de Pedro Américo

Por Maria Marlene Redkva Wanke (apresentação no livroO Grito do Ipiranga Segundo Pedro Américo– Sou do tempo que nas escolas existia uma professora de canto e ensaiávamos todos os hinos possíveis sob o estridente som do velho piano. Toda manhã a bandeira nacional era hasteada e em posição solene e respeitosa entoávamos o hino nacional.

Por ocasião do aniversário da independência éramos obrigadas pela escola a pedir a nossa mãe e para engomar a túnica branca que servia de uniforme e eu mesma tinha que passar alvaiada no tênis que naqueles tempos só eram usados nas aulas de educação física. Então desfilávamos garbosas na principal avenida da cidade.

No começo, nem entendíamos aquele contato com as festas da independência e marcava muito a longa espera nas ruas laterais da avenida aguardando a nossa hora de marchar diante do palanque das autoridades. Como participante, minha preocupação era não errar o passo.

O efeito do quadro “Independência ou Morte

No início do segundo ano da minha vida escolar fomos conduzidas para nossa nova sala de aulas e a primeira coisa que vi foi uma grande gravura do quadro “Independência ou Morte” fixada na parede ao lado do crucifixo.

Como naquele primeiro ano não nos explicaram o significado daquela imagem, nos momentos de desconcentração eu ficava olhando aquela gravura imaginando ser uma cena tirada dos livros de contos de fada, com um príncipe ao centro incentivando os soldados a salvar uma suposta princesa num castelo qualquer.

Com o tempo fui me dando conta do real significado da gravura. Mas a desconstrução daquela imagem de criança levou mais tempo que a própria pintura feita pelo artista.

No colegial, soube daquela história da dor de barriga do príncipe, o que de certa maneira embaralhou a minha visão da cena certinha que tinha do quadro famoso.

 

Ora, se o príncipe estava com esse mal estar não poderia exibir toda aquela exuberância contida na sua imagem épica. Depois aprendi que num passe de mágica, Pedro Américo tinha transformado burros e mulas em exuberantes cavalos.

Talvez minha principal decepção a respeito foi, quando já na faculdade, descobri que existem três relatos de testemunhas oculares do episódio do “grito” que os autores dos livros didáticos da época ignoraram.

Esses compêndios de história eram fantasiosos e baseados sempre no relato pictórico do pintor.
Ora, que educação é essa que privilegia a fantasia em relação a uma ação documentada descrita por pessoas que viram o episódio?

 

Mas foi no dia a dia de professora de história que aprendi muito com o questionamento da criançada. Vendo atentamente a gravura, estranhavam, por exemplo, que aqueles soldados da comitiva estivessem de uniformes limpos – aparentando terem saídos do alfaiate – depois de uma penosa viagem na poeira de uma estrada rústica. Queriam saber porque esses mesmos soldados não portavam armas de fogo, exibindo suas espadas desembainhadas para o céu. E aquele gaiato que erguia seu guarda chuva em vez de uma espada? Ora, o céu estava limpo sem indicação de chuvas.

A dúvida mais interessante surgiu de um pré adolescente, e portanto, com imagem do quadro já fixada na sua memória.

Queria saber se “o cara” que tinha pintado a cena fazia parte da comitiva do príncipe. Por que? Ora, ela sabia todos os detalhes numa época que ainda não existia a fotografia.

Todas as respostas são óbvias, isto é, que o quadro poderia se chamar, tal como este livro, de “O Grito do Ipiranga segundo Pedro Américo”. Toda esta abordagem contida no quadro saiu da cabeça do pintor, mais de 60 anos depois do ato, e só.

Esta história permite uma reflexão sobre a qualidade das informações que o professor repassa a seus alunos.

 

Numa ponta está a dificuldade de absorção das informações e sua fixação na memória dos estudantes. Na outra, para um bom professor, existe o perigo do conteúdo acabar num exagero – ou auto sugestão – que o aluno possa  deformar um a informação.

Passando por cima dos delírios, o quadro não deixa de ser uma lembrança inestimável. É como a imagem dos santos: estão ali para lembrar sua presença.

Nenhum país pode exibir um quadro de um ato que supostamente divide sua soberania: antes, uma colônia e depois, um país livre.

Sempre acreditei e preguei para meus alunos que a independência política só é completa para cidadãos com cidadania plena, gozando das liberdades e respeitando as leis do país soberano. Deve sempre estar acompanhada da justiça social, econômica e cultural de seus cidadões.

Nada mau para quem começou esta história como num conto de fadas.

 

(Marlene é esp

 

 

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