Por Luiz Ernesto Wanke – Por algum tempo namoramos aquele velho álbum de autógrafos da Olimpíada de Berlim de 1936 que estava exposto na vitrine de um sebo em Curitiba. Possuí-lo era um desejo muito grande, mas a grana curta não combinava com seu preço. Até que o dito cujo foi alvo de uma reportagem no jornal contando um pouco da sua origem e raridade e como consequência da divulgação, nosso objeto de cobiça aguçaria uma atenção maior e a chance de perdermos aquele raro álbum aumentaria consideravelmente.
Era um álbum de propaganda da festa nazista comandada por Goebbels, com fotos e mensagens de Hitler.
Não teve jeito senão reunir os trocados e as forças – juntamente com o filho Marcos Luiz – e correr para dar um cheque pré-datado para concretizar o sonho.
Pertencera a uma atleta, baronesa Hilda von Puttkamer, na realidade alemã de nascimento que se mudara para cá e se naturalizara brasileira. Única atleta do Brasil que competiu na modalidade de florete não fez feio: classificou-se para a semifinal entre as dezesseis melhores atletas. Infelizmente, na semifinal perdeu para todas as adversárias. Livre dos compromissos oficiais, sua distração foi buscar os autógrafos naquele álbum dos medalhistas de ouro daquela Olimpíada. E assim fez enchendo-o com assinaturas dos primeiros colocados nas diversas modalidades.
Resolvi pesquisar sobre os personagens daquele álbum. O primeiro da lista era o mais famoso:
Assinatura n. 1: O LENDÁRIO JESSE OWENS
Foi desse atleta – lendário porque suas vitórias desagradaram Hitler – que Hilda conseguiu sua primeira assinatura. Mais ainda, para ela Owens escreveu abaixo as provas que tinha participado como velocista, todas batendo os respectivos recordes olímpicos: corridas de 100 metros rasos ( tempo de 10s e 3 décimos); 200 metros (tempo de 20s e 7 décimos) e salto em extensão, prova característica de velocistas, com 8,06 metros.
Mas quando Owens assinou o álbum para Hilda, ainda não tinha corrido o revezamento 4×100 m, que ele nem estava escalado para competir. Quer dizer, assim como Hilda, ele passeava livre na vila Olímpica porque supunha ter encerrado sua participação.
Para o revezamento, o técnico Lawson Robertson tinha escalado quatro atletas, entre eles, dois de origem judia, Martin Glickman e Samuel Stoller, todos especialistas na prova. O técnico nem tinha cogitado Owens e seu companheiro Ralph Metcalfe, medalha de prata na prova de 100 metros vencida pelo primeiro. Na última hora, o técnico mudou de opinião e escalou os dois atletas negros no lugar dos judeus. Imediatamente recebeu críticas ásperas da imprensa do seu país por estar supostamente atendendo a pressão alemã, hostil aos judeus.
Decisão sábia: com os dois a equipe americana bateu o recorde mundial que duraria mais de 20 anos: tempo de 38s 8 décimos.
O mais interessante é que o episódio gerou um incidente de ordem racial entre a delegação norte-americana, justamente com ele, Owens, alvo da ira de Hitler. Além da
Imprensa americana, os prejudicados, Glickman e Stoller, reclamaram alegando que, se fossem eles, os especialistas, o recorde teria sido melhor.
A assinatura de Owens no álbum de Hilda ocorreu no intervalo entre 5 a 7 de agosto, no intervalo entre o salto vitorioso e a corrida de revezamento, o que foi providencial para nossa atleta Hilda, porque no final Owens ficou com caibras no braço direito de tanto assinar autógrafos, cansaço que obrigou Owens a pedir para outros atletas negros assinarem por ele. Um deles foi Herb Flemming que era muito parecido com ele.
A história de Owens supera a lenda e é muito mais surpreendente saber que, quando na sua volta para casa, o seu presidente, Delano Roosevelt, não o quis recebe-lo e nem lhe mandou o tradicional telegrama de congratulação. Magoado, Owens apoiou Alfred Landon, o candidato de oposição a Roosevelt, na eleição seguinte. Com a fragorosa derrota deste candidato, Owens, um valoroso vencedor no esporte, teve que amargar maus momentos, sobrevivendo primeiramente como maestro de uma banda de música e, depois, como um modesto emprego de instrutor de recreação para crianças, em Cleveland.
Sua participação espetacular naquela Olimpíada virou uma lenda tão forte que ultrapassou os limites esportivos para se tornar uma referência contra a descriminação racial.