Por Luiz Ernesto Wanke – ( Este é um causo acontecido no anexo do Colégio Estadual Regente Feijó, em Ponta Grossa, na década de oitenta)
O prédio da escola era centenário, um daqueles casarões dos barões antepassados e agora adaptado como escola. A fachada cheia de altos relevos de figuras mitológicas, o assoalho rangia e ondulava quando um bando de alunos passava, as janelas eram pesadonas, as salas de aulas – antigos quartos – mal iluminadas e na escada de acesso ao segundo andar os degraus de madeira estavam tão gastos e fininhos, que denunciavam seu uso prolongado. Nem tinha nome próprio porque era um anexo de outro colégio.
Algumas salas não tinham corredores e todos tinham que transitar por dentro das outras salas em aulas. Neste caso, a rotina do professor em atividade era de interromper o que estava ensinando para esperar que o intruso fizesse a travessia.
Naquele ano, a brilhante orientadora educacional da matriz teve a ideia infeliz de separar as classes de alunos usando critérios de aproveitamento. Ficou assim, enquanto algumas classes eram de brilhantes desempenhos, outras tendiam para o desespero. Os bons foram colocados nas melhores salas e os outros – repetentes e indisciplinados – para as piores. Em consequência, existiam professores privilegiados ensinando maravilhados como manda o figurino e outros se matando tentando organizar o caos.
Neste departamento os mestres desesperados tinham que buscar seus alunos no pátio e acompanha-los como se fossem um bando de presidiários, sem tirar os olhos da turma porque num descuido alguma criança podia ser empurrada e despencar pela escada perigosa.
No segundo andar, numa sala espremida, eu ministrava aulas de matemática. Dos muitos problemas de aproveitamento daquela turma tinha um garoto chamado Alcides, inquieto e de difícil lida. Tanto é que seu material escolar se resumia num caderno amassado e encardido, dobrado e que ele carregava displicente no bolso atrás da calça, de onde só saia com muita má vontade de seu dono. De nada adiantava estimulá-lo, não se esforçava e tampouco colaborava nas aulas. Para piorar, detestava escrever.
E faltava as aulas adoidado. Quando vinha, só me irritava com seu marasmo.
Até que um dia, na minha aula, apareceu na porta um velhinho que logo se identificou como pai do Alcides. Carregava no braço direito uma cesta cheia de moranguinhos que vendia. Humildemente pediu licença e me chamou perguntado sobre o filho. Ansioso, queria saber tudo sobre o moleque Alcides, suas notas, seu comportamento e a dedicação nos estudos. Mesmo penalizado tive que ser sincero com o velhinho e cada palavra que eu dizia era uma punhalada verbal cravada no seu coração de pai.
No fim, ele chorou.
Depois, gaguejando, finalmente conseguiu pronunciar alguma coisa:
– Tinha esperança que ele chegasse a ser doutor!
E procurou seu filho lá atrás, na última fila. Esse olhar foi um dos mais tristes que presenciei em toda minha vida de professor.
Foi embora sem se despedir.
Minha revolta ficou dirigida para o Alcides: agora o caso era comigo! No final da aula, tocou o sinal para o recreio, mas chamei o moleque para uma conversa particular:
– Você não tem vergonha de desgostar tanto seu pai? Puxa, ele está se matando vendendo moranguinhos para que você possa estudar?
Insensível, o moleque nem piscava, indiferente à minha fúria. Desolado e sem mais argumentos, pedi para ver seu caderno:
– Você pelo menos copiou os exercícios?
Abri seu caderno de trás para frente: nada!
Quer dizer, nem tanto: a primeira página milagrosamente tinha algo escrito com sua letra miserável… Quando li o que aquele solitário texto dizia quase caí para trás como se levasse um soco na ‘boca do estômago’.
Não é que era uma oração?
E pior, uma oração pedindo paciência e compreensão de uns para outros! Nada mais direto para apaziguar minha fúria. Sim, fui a nocaute.
Quando levantei meus olhos, só consegui perguntar:
– Alcides, o que você quer ser na vida?
Ele me respondeu ‘na lata’:
– Mecânico!
E sentindo-se livre correu para o recreio. Eu, desolado, compreendi que seu lugar não era ali. Desci a escada e fui aproveitar os últimos minutos do recreio na sala dos professores, sentando-me numa cadeira, num estado deplorável.
Veio o professor Cizínio me acudir:
– O professor está pálido… O que houve?
Contei-lhe a história toda. Bateu o sinal da próxima aula, mas o colega nem ligou. Segurou-me pelo braço e deu uma solução para o problema:
– Talvez eu possa ajudar! É que meu vizinho tem uma oficina mecânica… Quem sabe não experimenta o garoto como aprendiz?
Feliz com a solução corri para o pátio encontrar o Alcides, pronto para contar-lhe a novidade. Mas o moleque tinha fugido, pulando o muro da escola e desaparecido.
Nunca mais o vi.
Você, leitor, pode pensar que o que vou dizer é uma mentira para dar o desfecho nesta minha história. Mas não:
Nunca mais vi o professor Cizínio que no final daquela mesma semana morreu com um fulminante ataque cardíaco.
Certamente está no céu.