Quando olhei a fila quilométrica esperando o meu ônibus é que dei conta do grande desastre de ter chegado o mês de março e com isto, recomeçado as aulas. Principalmente porque o ônibus que queria era compartilhado pelos jovens alunos, a caminho de suas escolas, todos identificados pelos seus uniformes.
Desanimado, assumi o último posto da imensa fila.
Depois de uma espera irritante chegou o primeiro ônibus, sucedeu-lhe outro e outro, mas a fila progredia numa morosidade angustiante. Eis que ocorre um milagre tão inesperado como só um milagre consegue ser: um único e misterioso ônibus passa diante dos meus olhos com a plaquinha de identificação de rota dizendo que seu destino me serviria. E melhor, parou lá adiante da fila sem ninguém entrar!
Corri desesperado, mas quando me aproximei a porta estava sendo fechada.
“- Tem que ser mais esperto, ô meu!” Gritou o motorista reabrindo a porta.
Puxa, sorri por dentro, o veículo estava vazio e eu me esparramei numa cadeira individual como um ‘pachá’. Por uns minutos fiquei extasiado, desfrutando a gostosura do momento e a grande sorte do dia.
“- Você vai para o terminal do Portão?”
Despertei do estado alfa, dando conta que o motorista estava perguntando para mim. Burro, ainda olhei para os lados para me certificar que era o único passageiro.
“- Vou sim!”
“- Mas vamos ter que fazer uma parada técnica!”
Que seria isto? Olhei para o cobrador que confirmou com a cabeça. Logo o motorista freou o veículo naquele sibilar forte, levantou-se e deu uma gostosa espreguiçada.
“- Me compre uma Tribuna!” ordenou ao cobrador.
“- Com que grana?”
O homem enfiou a mão no bolso e escolheu algumas moedas.
O cobrador foi e voltou, saltando da calçada para o ônibus num salto olímpico. ‘Podemos partir’, pensei.
“- Sobrou troco, não? Volte lá e me traga um ‘Papa Tudo”
Lá foi o cobrador de volta à banquinha.
“- Acabou.”
Só então o motorista me viu observando-o. Desconfiou:
“- Que mal lhe pergunte o que faz?”
“- Sou aposentado!”
“- Benza Deus… Cismei que o amigo era da prefeitura.”
Entendi que ele pensou que era um fiscal.
Terminada a leitura do jornal, o balanço das moedinhas do cobrador, finalmente o carro começou a se movimentar. Mas nem tanto. Logo no próximo sinaleiro parou. Abriu a porta e chamou alguém. Olhei curioso e vi uma mocinha, fantasiada de shortinho curto e blusinha sexy toda colorida, com grandes letras de uma imobiliária.
A moça colocou seu rostinho pelo vão da porta:
“- Balas!” disse o motorista.
Ela correu até a calçada e trouxe um punhado de balas. Ao repassar para o motorista algumas caíram.
“- Me dá um desses prospectos para enleá-las!” ordenou o motorista.
Então reparei na longa fila de espera atrás do ônibus. E começou um buzinasso. Acostumado, o motorista nem deu bola. Segurou o ônibus até que a mocinha atravessasse a rua. Aí foi o cobrador que reclamou:
“- Não vai sobrar nenhuma?”
“- Negativo! Se estava a fim, pedisse!”
Finalmente, seguiríamos incólumes ao destino? Não com eles. Logo paramos.
“- Uma calota!” gritou o motorista.
Uma o que?
O motorista apontou para um lugar distante.
“- Vá lá pegá-la!”
O trânsito estava brabo e ficamos ali parados até acalmar. Quando o sinaleiro deu um refresco, o motorista engatou uma marcha ré de uns trinta metros. Enfiou a cabeça para fora da janela orientando o cobrador:
“- Mais à direita… Ali, no cantinho!”
Olhei o jovem driblando os carros. Finalmente eis ele todo faceiro de calota na mão:
“- Já tenho duas dessas… Com essa, só me falta uma!” bradou o motorista com um sorriso nos olhos.
Imaginei que estava construindo um carro com as peças encontradas na rua. Aliás, achei a calota tão feia, de plástico preto, toda esfolada, tão diferente das cromadas e brilhantes que na minha infância corri atrás ao vê-las se desprender das rodas dos carros de minha saudade.
Enfim, novamente estávamos em movimento. Bem perto do terminal do Portão, ao cruzar a Rua República Argentina, um fusca atravessou-se na nossa frente. A brusca freada lançou-me contra a cadeira da frente e no choque, espremi meu dedinho mindinho da mão direita contra um suporte metálico.
“- Desgraçado!” gritou meu motorista.
“- Filho da puta!” respondeu nosso inimigo. E ainda acrescentou aos brados que estava na preferencial.
Enlouquecido, o motorista veio me cobrar, como se a culpa fosse minha:
“- Preferencial? Cadê a placa? E o transporte coletivo não conta?”
O homem não falava, gritava descontrolado apontando para mim:
“- Um lazarento desses vai prejudica-lo!”
Eu? Não entendi meu papel naquele espetáculo lúdico. Mas, calma, ele tinha seus argumentos:
“- Esta é uma linha experimental. Você é testemunha que ela é rápida porque desvia do centro, não concorda? Se bato o ônibus, vai contar na avaliação dos ‘home’ e eles podem suspender a linha prejudicando justamente o senhor que é usuário e depende dela… Não concorda?”
No limite de minha paciência desliguei sua fala da minha cabeça. Mas ele insistia:
“- Não concorda?”
Não, não concordava com nada. Raivoso com a dor no mindinho, eu armei mentalmente uma resposta que na hora não tive coragem de falar, mas na hora da saída iria esbravejar: ‘ se esta é uma linha experimental, sugiro que a prefeitura coloque-a como uma viagem de aventuras, e, claro, com a mesma tripulação’.
Bom, finalmente o ônibus encostou-se à praça do terminal. Na saída da catraca, parei e olhei fixamente para o motorista, pronto para declamar meu protesto. Mas ele notou meu interesse e se adiantou:
“- Está entregue! Vá com Deus!”
Está certo, me acovardei. Calado e com dor no mindinho, acabei engolindo minha revolta.
Acaso sou louco?
(Do livro inédito, ‘Pobrete, mas alegrete’)
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