Por Luiz Ernesto Wanke – (Este ‘causo’ é antigo, de mais de 60 anos. Ouvi numa barbearia enquanto estava sentado na cadeira cortando o cabelo, por outro freguês que esperava a vez. O interessante é que esqueci quase tudo, mal me lembro do lugar, das fisionomias e muito menos dos nomes dos personagens. Mas não tive problemas de relatar a história, tão fresca como tivesse acontecido agora. É que a memória afetiva guarda apenas o que nos interessa e descarta os detalhes inúteis.)
Finalmente tinha reunido força e vontade para cimentar o piso da garagem que sempre o incomodou. Bastava uma chuvinha rala para as goteiras estabelecer o caos naquele chão barrento e liso, de maneira que ao recolher o velho fusca, ou ele ou o carro se complicavam. Era tão desagradável essa situação que seus amigos de trabalho mais chatos espalharam por todos os cantos que ele tinha encalhado seu possante na própria garagem.
Num sábado de folga tomou coragem e munido de material e ferramentas foi à luta. Tudo nos conformes até o final da tarde quando estava alisando a última camada de cimento. Não é que ao levantar os olhos deparou lá no fundão da garagem e em cima do parapeito da única janela lateral, um bichano angorá gordo ameaçando saltar sobre o piso fresco tão caprichosamente aplainado? Em princípio gritou escandalosamente para afugentar o gato. Torcia para que, assustado, tomasse o sentido inverso. Gritou, atirou algumas pedras de brita, mas qual, o gato sem nada entender, só fazia olha-lo com maior curiosidade.
E, finalmente, aconteceu: o improvisado pedreiro viu em câmara lenta o angorá pular em cima do piso, afundando suas patinhas na nata do cimento fresco, fazendo um estrago que doeu bem no fundo do seu peito. Ainda assim continuou a gritar, esbravejar, mas qual, o desgraçado nem dava bola.
Como se fizesse de propósito, o gato veio andando em ziguezague como a boiada à procura de água num regato. Mal acostumado e com os pés sujos de cimento, ainda veio de mansinho se aninhar junto de suas pernas, miando e levantando a cabeça à procura de um afago no seu cangote. Depois se enrolou na barra de sua calça, roçou seus pelos no calcanhar, e, por fim, miou um amoroso pedido de colo.
Mas agora o pedreiro só tinha o ódio para oferecer. Não pensou duas vezes, apanhou a colher de pedreiro e de quina deu com toda a força que podia um golpe definitivo na nuca do bichano. Ele, estrebuchando, só teve tempo de dar uma olhada enviesada no agressor e como sem entender, seus olhos perguntassem: por quê?
Só então o homem acordou da raiva. Arrependeu-se, mas era tarde. Não tinha mais volta porque lá estava o bichano inerte com as quatro patinhas viradas para cima. Mas antes que o remorso florescesse, teve uma ideia genial, digna de um crime perfeito: com a própria colher cavou uma pequena cova no último lance do piso inacabado, enterrou ali o gato, cobriu-o com terra socada e completou o seu túmulo com uma camada de concreto.
Ainda chocado passou a régua onde o gato tinha deixado suas crateras. Olhou o resultado desaprovando, mas que fazer já que estava exausto. Juntou no carrinho de mão todo o material e já ia saindo quando a vizinha, uma solitária velhinha que morava no outro lado da cerca, encostou seu rosto enrugado num dos vãos e perguntou:
“- O vizinho não viu a Fifi por aí?”
“- Quem é a Fifi?”
“- Minha gatinha!”
Para não mentir, o pedreiro só balançou os ombros.
Sem uma resposta, ela abaixou seus olhos pensativos.
Depois continuou:
“- Sabe, moço, ela é danadinha! Mas não é má… Volta e meia foge para se encontrar com seus amantes pelos telhados da vizinhança… Eu a compreendo é moça e fogosa… Mas, vizinho, desde a morte do falecido me sinto tão sozinha que até eu preferia morrer, mas Deus é que sabe a hora. Então ela fica sendo minha única companheira e sinto tanta falta quando desaparece que não consigo dormir.”
(do livro inédito, Pobrete mas Alegrete)